Uma rua chamada Olímpio (V)
Gustavo Maia Gomes
(7/2/2018)
Moravam
pessoas interessantes na rua Olímpio Tavares, em Casa Amarela, Recife, em meu
tempo de criança, adolescente, adulto jovem. Aí pelos anos entre cinquenta e
setenta dos 1900. Nenhum Rui Barbosa, Princesa Isabel, Gilberto Freyre ou Anita
Garibaldi. Mas, gente para ser lembrada, mesmo com toda a sua falta de
proeminência. Qualidade que, afinal, elas repartiam comigo.
Gente
como Itacy, pai de Otávio e dono de um Javelin (“Já Vem Ruim”, depreciávamos).
Mantinha-o parado, sem um grão de poeira. Lustrando. Com o carro, se
relacionava bem; com o filho, vivia às turras, entremeadas por espancamentos.
Otávio inventava expressões: “fábrica de bater prego” significava qualquer
coisa muito barulhenta; “catinga de mau cheiro”, a fedentina insuportável.
Também
fabricava botões de quenga. Explico. No futebol de mesa havia os botões de
chifre, que podiam ser de torno ou de detenção – quer dizer, produzidos por
presos –, e os de quenga, a casca dura do coco. Pela ordem hierárquica, os de
torno eram os melhores; os de detenção superavam os de quenga, exceto, talvez,
os de quenga fabricados por Otávio -- a quem chamávamos Bifuca.
Ele
e o pai moravam na parte baixa da rua. Em frente, uma casa maior era a de
Bento. Esse não tinha filhos, de modo que pouco sabíamos da vida dele.
Comerciante, talvez. Seu Chevrolet 1950, ainda brilhando de fábrica, tinha
pneus com faixa branca, impecáveis. Aos domingos, Bento fazia com ele a volta
do quarteirão. Nos outros dias, o carro ficava na garagem.
Poucas
casas acima, viviam Djanira e os filhos Antônio, Maria Júlia e Marta. Antônio,
vários anos mais velho do que eu, tentou ser piloto da Aeronáutica. Não
conseguiu. Sua visão, se minha lembrança é correta, não era suficientemente
boa. Mesmo assim, passou anos longe da rua. Deve ter estudado fora do Recife,
para onde, que eu saiba, só voltou já adulto.
Marta
era bonita. Com pendores artísticos reais ou imaginários, puxava os desfiles
cívicos do Colégio Bandeirantes – era a baliza, como dizíamos. Nessas ocasiões,
suas pernas públicas chamavam a atenção, em tempos tão recatados. Um dia, houve
um concurso de beleza num pequeno clube do bairro. Com medo, talvez, de que uma
derrota abalasse o prestígio de Marta, Djanira escalou Maria Júlia para
concorrer. Ela ganhou. Tornou-se a única miss Júpiter de todos os tempos.
Do
outro lado da rua, o casal Barreto – Antônio e Georgina – tinha três filhos:
Lula, Papu e Linda, e um agregado, Amaro, irmão de Georgina. Esse não
trabalhava. Um dia, em 1958, “seu” Barreto – comerciário – morreu. A família
entrou em grave crise econômica. Para sobreviver, Georgina vendeu as galinhas e
os periquitos que o marido criava no quintal. Tentou fazer Amaro conseguir um
emprego, mas, não conseguindo, pôs a casa para alugar. Nunca mais soube deles.
Jairo,
quando adulto, foi trabalhar em Maceió e ficou por lá. Mas,
antes disso, morou um tempo com os pais Durval e Ester na rua chamada
Olímpio. Ainda hoje é amigo de meu irmão, Ivan, e meu. Durval (gerente de
uma distribuidora de bebidas) e Ester tinham outros quatro filhos: Haidé,
Raquel, Fernando e Zélia. Todos se mudaram, em meados dos anos sessenta, para o
Rio de Janeiro.
Todos,
menos Jairo, que passou uma temporada conosco. Não quis sair do Recife por
causa de Neide, com quem se casou. Frequentemente, driblando a vigilância da
noiva, fazia programas noturnos e, ao chegar, de madrugada, repetia aos gritos
“Ivanzinho, Gustavinho” enquanto caminhava da rua ao quarto onde dormíamos,
externo à casa. Para afugentar os ladrões, explicava ele.
As
casas dos irmãos Aguiar, Marcelo e Marcos, ficavam aos lados da minha. Marcelo
votava em Adhemar de Barros, o governador rouba-mas-faz de São Paulo que se
candidatou duas vezes a presidente. Quando saiu da Goodyear, a fábrica de pneus
de que era representante comercial, comprou um carro Renault Rabo Quente. Tinha
opiniões inflexíveis sobre política e moralidade, que defendia aos gritos. Eu
jogava baralho com seu filho Zé Paulo. Ele sempre roubava. Não por isso,
também era surrado regularmente pelo pai. Sem grandes resultados. Sua vida foi
tumultuada.
Com
Marcos, o segundo Aguiar, tive relações duradouras. Demasiadamente duradouras,
receio. Ele era médico e uma de suas filhas viria a ser minha primeira mulher.
Podia se irritar facilmente e, então, ser agressivo. Criava porcos no quintal.
Para alimentá-los, recolhia restos de verduras e excrementos de galinha, punha
tudo em um tonel e deixava a mistura apodrecer na calçada da casa. O mau cheiro
resultante invadia as narinas de quem estivesse num raio de cem metros.
Seu
repertório de excentricidades é inexcedível. Durante um tempo, foi radioamador, numa categoria abaixo da principal.
Como falava alto, podíamos acompanhar suas conversas noturnas a certa
distância. De uma feita, desentendeu-se em pleno ar com a vizinha Sofia e, literalmente, a
mandou "à merda". A mulher ficou uma arara. Deve ter protestado em alguma instância, produzindo um
pequeno escândalo. Em consequência, Marcos teve o registro cassado ou foi
suspenso por um tempo.
Certa
feita, ele colocou uma bezerra no Perfect. Algo, aparentemente, impossível, pois
aquele era um carro muito pequeno. Noutra, alojou uma vaca na Kombi, cujo espaço era maior, mas, não tanto. A cabeça
do animal ficou projetada sobre o banco da frente, entre o motorista e o
acompanhante, como se fora a de um passageiro. Não sei se a vaca participou da
conversa entre Marcos e seu genro Manuel, que estava no carro e me contou o episódio, anos atrás.
Muitos
dos sucessivos automóveis do meu futuro sogro não tinham bomba de
gasolina. Pelo menos um carecia de freios confiáveis. Outro, só engatava a
primeira marcha se um menino se esgueirasse por baixo dele com uma chave
inglesa e destravasse alguma coisa. Era o mesmo menino que, ajudado por
terceiros, empurrava o carro para pô-lo em movimento, pois não havia motor de
partida.
A
bomba quebrada – isso aconteceu com um dos carros – foi substituída por uma
lata de combustível soldada em cima do carburador. A gasolina fluía por
gravidade. Exceto nas ladeiras, quando era preciso que alguém se sentasse ao
lado do motor, com a tampa parcialmente levantada, e suprisse o combustível
manualmente, enquanto a viagem prosseguia. Sou testemunha ocular de quase tudo
isso. À época, havia pouca fiscalização nas estradas; quase nenhuma nas
cidades. E Marcos sempre se safava, se parado fosse, distribuindo amostras
grátis de remédios aos policiais.
A
mulher, Carmita, prima de minha mãe, era mais inteligente que o marido. Os
filhos Antônio e Marcos, quando meninos e rapazes, foram amigos muito próximos.
Estudamos um ano juntos, 1964, no Colégio Salesiano. Mas a amizade não
sobreviveu à minha separação, em 2001. O mais velho chegou a praticar
espionagem, começando a carreira com a tomada de fotos de meu quintal, para
instruir a tentativa de extorsão feita pela irmã, de quem eu estava a me
divorciar. Nos últimos anos, nos reconciliamos, relativamente.
Simplício,
um velho mecânico solteirão que comprava carros velhos para reformar e
revender, residia na parte mais alta da rua. Quase certamente, era homossexual,
um escândalo, naquele tempo. (A rua teve outro deles, este notório, muito mais
tarde: Airton, codinomes Marlene e Prefeitura. Tocava piano muito bem, para a
rua inteira ouvir.) Simplício morreu, provavelmente, durante a primeira metade
dos anos cinquenta. Muito depois, veio morar na rua, mas em outra casa,
Albertino, que também ganhava a vida reformando carros velhos.
A
casa em frente à minha – uma casa grande, contrastante com as demais, devia ter
sido sede de engenho – era habitada pela família Amorim: Wandelcy e Nelly, os
pais; Waldir, Nellysinha, Walter e Walmir, os filhos. Waldir era introspectivo,
passou um tempo no Seminário, leu o livro e se entusiasmou com Liberdade sem
Medo, de A. S. Neil. Viria a ser médico. Sua história terminou em tragédia, há
um ano, mais ou menos. Nellysinha nasceu sem antebraços e sem mãos, mas,
admiravelmente, teve vida tanto quanto possível normal: ia às festas, dançava,
namorou e se casou no tempo devido. Estudou e trabalhou como jornalista. Os
outros dois filhos, Walter e Walmir, muito mais jovens do que eu, com quem,
portanto, não convivi muito, viviam fazendo traquinagens. Os dois se
tornaram, anos à frente, empresários de sucesso.
Havia
gente merecedora de lembrança também nos arredores da rua Olímpio Tavares. A
lanchonete em frente à igreja do Arraial, distante 200 metros de onde eu
morava, foi construída por um certo José. Era muito frequentada por nós todos,
sempre ávidos por conversas e cervejas. Depois, vendido em sucessivas
operações, o lugar foi bater nas mãos de um sujeito esquisito, logo apelidado
de Sujinho, ou Todo-Sujo. Fazia suas necessidades no chão da própria barraca,
que passou a exalar uma autêntica catinga de mau cheiro, como diria Otávio Bifuca.
Nas
reuniões dominicais na calçada da igreja (fingíamos ir à missa, mas estávamos
de olho, mesmo, nas meninas), era impossível não encontrar Rui, autoconvencido
de ser a pessoa mais feia do mundo. Com certa razão, devo admitir. Do mesmo
modo que nunca deixávamos de ver Candinho, um débil mental com um olho aberto e
outro fechado. Dizia ele, para não gastar os dois ao mesmo tempo. O vendedor de
cavacos (aqueles biscoitinhos enrolados que ainda hoje compro nas ruas), frequentemente, terminava ali seu
dia de serviço, vendendo-nos toda a mercadoria restante. Mercadoria que ele transportava num grande recipiente metálico cilíndrico pendurado às suas costas.
Não
sei como os vizinhos da rua Olímpio Tavares nos viam, a meus pais, irmãos e a
mim, nos idos de cinquenta e sessenta. Discretos; talvez nem fôssemos notados.
Ou, quem sabe, contraditoriamente, nos tomassem por esnobes, pobres,
presunçosos, medíocres. Cabe a eles dizer.
Bons
tempos, os da miss Júpiter.
Oi Gustavo gostei muito das suas publicações sobre a R.Olínpio Tavares,fiquei mais ainda quando vi a foto da casa n°80, sou de Natal RN e aqui mesmo conheci um morador dessa rua que se tornou meu marido, é Bel filho de Seu Albertino e D. Alaíde. EM 1985 visitei a Olímpio Tavares pela primeira vez e assim foi até 2015 quando foi vendida a casa de número 80. Conheci seus pais sua mãe muita simpática, elegânte e super educada, Ivanilda nessa época ia muito lá em D. Alaíde conversar com sua filha Marina que era era bem pequena e assim o tempo passou muito rápido e ficou só as lembranças da R. Olínpio Tavares n°80.
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