sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Como eram as casas da Mangabeira de Cima?

Uma rua chamada Olímpio (VIII)
Gustavo Maia Gomes
(16/2/2018)


Um anúncio em inglês (para atrair inquilinos estrangeiros) das casas da então rua
Moura Esteves, futura Olímpio Tavares (Diário de Pernambuco, 1927)

Tal qual M. Jourdain, o burguês fidalgo de Molière que falava em prosa e não sabia, eu morei anos na Mangabeira de Cima, Recife, sem ter a menor suspeita disso. Era onde ficava a rua Moura Esteves. Esses nomes antigos já tinham caído em desuso, no meu tempo: Mangabeira de Cima se chamava, então, Casa Amarela; Moura Esteves passara a ser Olímpio Tavares. Como eram aquelas casas, a minha e as de meus amigos, urbanística e arquitetonicamente falando? O que havia dentro delas, de móveis e utensílios?

Muros e paredes

Achei notável este anúncio, publicado no Diário de Pernambuco em 7 de outubro de 1952: “Vende-se [residência] com três quartos, salas de jantar, de visitas e terraço, entrada para automóvel, por preço de ocasião. Sita à Rua Olímpio Tavares, 37, junto à Estrada do Arraial”. Ele descreve uma casa típica da rua em que morei quando criança e adolescente. Ressaltar a “entrada para automóveis” em 1952, pensei, indicava certo pioneirismo. Ainda, pouca gente tinha carro, naquele ano.

Só que, recuando a pesquisa, encontrei este outro, publicado 25 anos antes: “Alugam-se casas modernas, com boas acomodações, saneadas, luz, água, entrada para automóveis, na linha de Casa Amarela, rua Moura Esteves. Ótima ocasião para estrangeiros” (Diário de Pernambuco, 5/1/1927). Moura Esteves era como se chamava a rua que, em 1929, ganhou o nome Olímpio Tavares. Muitos conheciam o bairro como Mangabeira de Cima. O anúncio de 1927 já fala em “entrada para automóveis”! O pioneirismo vinha de longe.

Foram Olímpio e seus filhos (certamente, os donos das terras) que, em 1926, edificaram as 20 ou 21 casas iguais, dos dois lados da rua, se é que existia, mesmo, uma rua ali, antes disso. Tinham em mente, como potenciais inquilinos, preferencialmente, os estrangeiros. E, pelo jeito, em alguns aspectos, eram dotados de uma concepção arquitetônica avançada para a época.

Com o tempo, as casas foram sendo modificadas. Meu pai comprou a dele em 1950. Reformou-a diversas vezes. Em 1964, fez as mudanças mais extensas. Oito anos antes disso, uma delas foi assim descrita no mesmo jornal (5/3/1958): “Aluga-se a casa n. 77 da rua Olímpio Tavares, Casa Amarela, com três quartos, duas salas com mosaicos e tacos, dois terraços, cozinha com balcão, dois saneamentos [banheiros, suponho] com instalação de água quente [quase certamente, fios e tomada para chuveiro elétrico], estucada com lustre nas salas, quarto externo para empregado, jardim e grande quintal arborizado”.

Grandes quintais – que coisa boa! – eram comuns a todas as casas, com apenas duas ou três exceções. Continuam assim, ainda hoje. Em 1959, um proprietário pôs sua casa para alugar e se lembrou de dizer que a rua era calçada (13/2/1959). Acho que o calçamento foi feito em 1954, como parte das comemorações pelos 300 anos desde a expulsão dos holandeses. A rua Olímpio Tavares fica ao lado do Sítio Trindade, ou Arraial do Bom Jesus, um local histórico da guerra contra os invasores batavos.

A despeito de seus aspectos pioneiros, as casas da rua Olímpio Tavares tinham defeitos arquitetônicos graves, quando avaliadas pelos padrões que viriam a predominar décadas mais tarde. Aproveitavam mal a ventilação, a ponto de as duas salas serem quase de nenhuma utilidade, pelo excesso de calor. Os quartos se abriam para a área social, ficando longe do único banheiro interno existente. (Não sei se as dependências de empregadas foram uma adição posterior ao projeto original. Elas tinham seu próprio banheiro.)

A planta única não diferenciava as casas voltadas para o nascente das que encaravam de frente, com a mesma disposição de cômodos, o insuportável sol da tarde. Antes da vulgarização do ar condicionado, um fenômeno dos anos 1990, o inevitável incômodo causado pelo calor nordestino naquelas casas era aumentado por esses defeitos em sua concepção. Sim, as casas da Olímpio Tavares tinham problemas. Mas, eram boas assim mesmo.

Recheio

Como Gilberto Freyre mostrou há quase cem anos, os jornais são uma rica fonte de informações econômicas e sociológicas. Vejam o caso dos anúncios das coisas que as famílias punham à venda por motivo de viagem ou quando trocavam um item antigo por outro mais novo. (Todas as citações são do Diário de Pernambuco.)

Na rua Olímpio Tavares, 97, a família queria vender “um fogão Dako, seminovo, com duas bocas, um ótimo forno a carvão” (26/4/1957). Em 1958, aparecem anúncios de venda de “um refrigerador da marca Frigidaire seis e meio pés, perfeito funcionamento” (7/3); de uma máquina de costura Singer (17/10) e de “uma radiola Philips seminova, motivo viagem” (6/11).

No ano seguinte (1959), alguma melhoria se observa: a máquina de costura posta à venda tinha “motor e farol, último modelo” (6/1), enquanto a radiola Philips era dotada de “três rotações e de um rádio com quatro faixas” (7/1). Apareceu, também, o anúncio de venda de “sala de jantar, um guarda-roupa, um penteador com pedra-mármore, e um quarto de Sucupira. Ver e tratar na rua Olímpio Tavares, 47” (12/9).

Mas, reveladoras mesmo eram as vendas que se deviam a mudanças da família para outra cidade, pois, nessas ocasiões, podíamos ter uma ideia mais completa do que havia de bens móveis naquelas casas, de seu recheio. Um exemplo: “vende-se um bom piano, geladeira Hotpoint perfeita, fogão a gás com forno, duas camas americanas Simmons, máquina de lavar roupa Maytag americana com novo motor, talheres para 12 inoxidáveis, rádio, telefone novo, outros móveis” (2/6/1963).

Ou ainda, a mesma família, poucos dias depois, complementando o anúncio acima: “vendem-se duas cadeiras, sofá-cama Drago, um relógio de parede, talheres inoxidáveis americano para 12, jogo de louça americana, uma cristaleira” (19/6/1963).

Ou seja, nos primeiros anos 1960, uma família de classe média-média, como eram, tipicamente, as que moravam na rua Olímpio Tavares, podia, perfeitamente, possuir piano, geladeira, fogão a gás com forno e, até mesmo, uma máquina de lavar roupa.

Também tinha automóvel: importado da Inglaterra, França e Estados Unidos, nos anos 1950; fabricado no Brasil, na década seguinte: “Vendo. Em ótimo estado de conservação, Volkswagen 1963, todo equipado, rádio, forro de napa, cilibrine, jante 67, cor pérola, pneus novos, etc. Motivo viagem”. O que era, mesmo, “cilibrine”? (16/3/1969)

Dos carros, já falei, em capítulos anteriores. Nos anos 1960, sobretudo, em sua segunda metade, praticamente, todas as famílias residentes na rua Olímpio Tavares possuíam automóveis. Mais velhos do que novos, em sua maioria. Alguns, como o de um certo vizinho meu, de tão danificados, parecendo andar por um milagre.

Nossa vida era boa; a delas, nem tanto

Uma rua chamada Olímpio (VII)
Gustavo Maia Gomes
(16/2/2018)


A rua Olímpio Tavares (Casa Amarela, Recife), em 1965
(Foto Gustavo Maia Gomes)

“Precisa-se de cozinheira” no número 120 da rua Olímpio Tavares, anunciava o Diário de Pernambuco, em 2 de outubro de 1954. Ah, sim! Aquelas famílias tinham empregadas domésticas. O anúncio completava: “Ordenado, 250 cruzeiros”.

Será interessante avaliar esse número sob três ângulos. (1) Para a empregada, 250 cruzeiros mensais eram muito ou pouco? (2) Para a patroa (ou seu marido, tipicamente, o único a ter renda monetária na família), era caro ou barato contar com uma cozinheira? (3) De 1954 a 2018, melhorou ou piorou a remuneração real das domésticas da rua Olímpio Tavares?

Vamos por partes.

A situação em 1955

Na edição de 17/6/1961, o jornal A Noite, do Rio de Janeiro, publicou a reportagem “Em 1930, ovo era um tostão”. Ali aparece uma preciosa lista dos itens básicos de alimentação com informações de quanto custava cada um, em anos próximos.

Em 1955, eram os seguintes essas mercadorias e seus preços em cruzeiros (Cr$), a moeda da época: Cebola (13,30), Charque (41,80), Farinha de Mandioca (5,00), Feijão (12,10), Manteiga (82,20), Açúcar (8,00), Arroz (17,60), Banha (28,60), Batata (8,30), Café em Pó (54,20), Carne de Vaca (36,10), Pão (9,70), Leite (5,10), Ovos (25,80). Os preços se referem a porções de um quilograma, exceto nos casos do Leite (litro) e Ovos (dúzia).

Somando tudo, essas quantidades de alimentos (suficientes para o consumo mensal de uma pessoa) custavam Cr$ 347,80. Portanto, alguém que ganhasse meros Cr$ 250,00 mensais (como a cozinheira da rua Olímpio Tavares, 120) não teria dinheiro nem para comprar a cesta básica. Bem, as empregadas recebiam grátis todas as refeições do dia. Mesmo assim, seu salário em espécie mal passava de setenta por cento do valor daquele conjunto de mercadorias essenciais à sobrevivência.

Dou o desconto de que os preços no Recife poderiam ser menores do que no Rio de Janeiro. Digamos que fossem 28% mais baixos. Nesse caso, a “cesta básica” na capital pernambucana poderia ser comprada com os Cr$ 250 recebidos pela cozinheira como “ordenado”. Era uma miséria, evidentemente, o que ela ganhava.

Hoje está melhor

Agora, podemos ver tudo isso por outro ângulo, que mostra como, desde 1955, a situação melhorou muito para as empregadas domésticas da rua Olímpio Tavares.

Em 2018, no Recife, são os seguintes os preços aproximados (nas feiras de bairros) das mesmas mercadorias listadas acima, apenas substituindo cruzeiros por reais e “Banha” por “Óleo de Cozinha”: Cebola (2,50), Charque (19,90), Farinha de Mandioca (3,00), Feijão (3,20), Manteiga (11,00), Açúcar (2,50), Arroz (3,00), Óleo de Cozinha (5,00), Batata Inglesa (2,50), Café em Pó (4,50), Carne de Vaca (25,00), Pão (6,00), Leite (5,10), Ovos (5,00). As quantidades, de novo, são porções de um quilo, exceto nos casos do Leite e Óleo de Cozinha (litro) e Ovos (dúzia).

A “cesta básica” de 2018, definida no parágrafo anterior, igual à de 63 anos atrás, custa R$ 96,00. Ocorre que, nos dias de hoje, uma cozinheira ou arrumadeira na rua Olímpio Tavares não ganha menos de R$ 1.000,00 – cerca de um salário mínimo. Seu salário, consequentemente, pode comprar dez vezes (e não mais apenas uma vez) o consumo essencial mensal de alimentos de uma pessoa.

Sem falar que as domésticas de hoje têm condições gerais de trabalho muito melhores, com férias, décimo-terceiro salário e aposentadoria asseguradas. E continuam fazendo, pelo menos, uma refeição por dia grátis, na casa da patroa. Não foram os governos populistas recentes que outorgaram esses benefícios, pois o que eles dão com uma mão, a inflação tira com a outra. O movimento vem de muito antes e responde não apenas a políticas e leis, mas, sobretudo, às forças de mercado.

Voltando ao passado

Em 23/12/1953, a mesma casa da rua Olímpio Tavares cuja família residente queria contratar uma cozinheira pagando Cr$ 250, tinha sido posta para alugar por Cr$ 2.500. O ordenado da empregada equivalia, portanto, a dez por cento desse valor. Atualmente, uma casa típica da mesma rua se aluga por R$ 3.000. Se a relação de valores observada em 1953-54 ainda prevalecesse, a cozinheira receberia apenas R$ 300. Menos de um terço do que ela, de fato, recebe hoje.

Tenho outra forma de calcular o “ordenado real” da cozinheira. O salário mínimo, em outubro de 1954, era de Cr$ 2.400; a empregada da velha rua Olímpio Tavares receberia, portanto, um décimo desse valor. Hoje, a sua sucessora na mesma localidade ganha, por baixo, um salário mínimo. Dez vezes mais do que a cozinheira de antigamente recebia. E as condições de trabalho que ela tem, no presente, são incomparavelmente melhores.

Sem pretender transformar a rua onde morei dos três aos 23 anos de idade no centro do mundo, as comparações feitas acima não deixam de ser interessantes. E sugestivas de uma grande melhoria nas condições de vida daquelas trabalhadoras que, ainda hoje, estão entre os menos qualificadas e, portanto, de menores salários.

Uma descrição completa das “condições de vida” das domésticas teria de ir muito além do aspecto salarial. No contexto de uma sociedade que, então muito mais do que hoje, reduzia as mulheres a seres de segunda classe, as domésticas eram ainda mais desvalorizadas. Tinham de estar em plantão permanente – o fato de dormirem na casa da patroa tornava isso inevitável – e, muitas vezes, eram transformadas em objetos sexuais dos filhos dos patrões. Só lentamente foram recebendo benefícios como férias e descanso remunerado aos domingos.

A Rua Olímpio Tavares, naqueles anos, não era diferente das demais ruas do Recife, a esse respeito. Ainda bem que isso mudou.

O ângulo da patroa

Não tenho informações diretas, nem mesmo aproximadas, sobre os rendimentos médios ou típicos das famílias que habitavam, em 1954, as casas da minha rua de criança. Mas, posso fazer uma estimativa não absurda, a partir do aluguel que elas (a julgar por um anúncio encontrado no Diário de Pernambuco) pagavam, no mesmo ano: Cr$ 2.500. (Isso, num caso. Os outros, porém, não deviam ser muito diferentes pois, nesse ano, as casas da Olímpio Tavares ainda eram muito parecidas umas com as outras.)

O passo seguinte seria conhecer que percentagem de sua renda total que aquelas famílias estavam dispostas a destinar ao pagamento do aluguel da casa. Faço a hipótese de que fosse algo próximo de 20%. Combinando a informação sobre o valor do aluguel com esse parâmetro de 20%, uma família típica da rua chamada Olímpio, em 1954, (e havia pouca discrepância entre elas, se excluirmos o “rico” comerciante Bento da amostra) devia ganhar cerca de Cr$ 12.500 por mês.

Devo dizer que, se essa mesma metodologia de cálculo for aplicada às famílias da rua Olímpio Tavares nos dias atuais, o resultado obtido parece bastante plausível. O aluguel de uma casa típica na rua é, hoje, próximo a R$ 3.000. Ou seja, se a disposição de gastar 20% da renda em aluguel for admitida como uma boa aproximação da realidade, a renda familiar padrão (somando, como hoje é a regra, os ganhos do homem e da mulher) na rua onde morei até 1970 será de R$ 15.000. Esse número não está muito longe da realidade contemporânea.

Voltemos a 1954 e à segunda pergunta feita lá no alto: para a patroa (ou seu marido, ou os dois), era caro ou barato contar com uma cozinheira? Mais uma vez, era barato. Mesmo que, para a família, a empregada doméstica custasse duas vezes mais do que o seu salário nominal (pois comia de graça no emprego, além de consumir água e luz elétrica para fins pessoais), ainda assim isso significaria Cr$ 500 divididos por Cr$ 12.500, o que corresponde a quatro por cento dos rendimentos conjuntos de seus empregadores. Em outras palavras, a família gastava com a cozinheira apenas quatro por cento de seu rendimento total.

Na atualidade, a renda típica da família moradora à rua Olímpio Tavares é de R$ 15.000 e o custo total da sua empregada deve exceder R$ 1.250, considerando um salário nominal de R$ 1.000 acrescido dos encargos sociais e despesas de alimentação, luz e água. Portanto, a cozinheira custa, hoje, para a família que a emprega (como proporção do rendimento total desta) oito por cento. Duas vezes mais do que custava em 1954.

Esses cálculos, embora grosseiros, não deixam de captar a essência do que aconteceu no Brasil, em Pernambuco, no Recife e na rua Olímpio Tavares, nos últimos 60 anos: o progressivo aumento da remuneração real das empregadas domésticas. E a melhoria geral de suas condições de trabalho.

O menino de sete anos – esta era minha idade, em 1954 –, seus pais e vizinhos estavam escrevendo a História sem terem a menor noção disso.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

No tempo de miss Júpiter

Uma rua chamada Olímpio (V)
Gustavo Maia Gomes
(7/2/2018)
Moravam pessoas interessantes na rua Olímpio Tavares, em Casa Amarela, Recife, em meu tempo de criança, adolescente, adulto jovem. Aí pelos anos entre cinquenta e setenta dos 1900. Nenhum Rui Barbosa, Princesa Isabel, Gilberto Freyre ou Anita Garibaldi. Mas, gente para ser lembrada, mesmo com toda a sua falta de proeminência. Qualidade que, afinal, elas repartiam comigo.
Gente como Itacy, pai de Otávio e dono de um Javelin (“Já Vem Ruim”, depreciávamos). Mantinha-o parado, sem um grão de poeira. Lustrando. Com o carro, se relacionava bem; com o filho, vivia às turras, entremeadas por espancamentos. Otávio inventava expressões: “fábrica de bater prego” significava qualquer coisa muito barulhenta; “catinga de mau cheiro”, a fedentina insuportável.
Também fabricava botões de quenga. Explico. No futebol de mesa havia os botões de chifre, que podiam ser de torno ou de detenção – quer dizer, produzidos por presos –, e os de quenga, a casca dura do coco. Pela ordem hierárquica, os de torno eram os melhores; os de detenção superavam os de quenga, exceto, talvez, os de quenga fabricados por Otávio -- a quem chamávamos Bifuca.
Ele e o pai moravam na parte baixa da rua. Em frente, uma casa maior era a de Bento. Esse não tinha filhos, de modo que pouco sabíamos da vida dele. Comerciante, talvez. Seu Chevrolet 1950, ainda brilhando de fábrica, tinha pneus com faixa branca, impecáveis. Aos domingos, Bento fazia com ele a volta do quarteirão. Nos outros dias, o carro ficava na garagem.
Poucas casas acima, viviam Djanira e os filhos Antônio, Maria Júlia e Marta. Antônio, vários anos mais velho do que eu, tentou ser piloto da Aeronáutica. Não conseguiu. Sua visão, se minha lembrança é correta, não era suficientemente boa. Mesmo assim, passou anos longe da rua. Deve ter estudado fora do Recife, para onde, que eu saiba, só voltou já adulto.
Marta era bonita. Com pendores artísticos reais ou imaginários, puxava os desfiles cívicos do Colégio Bandeirantes – era a baliza, como dizíamos. Nessas ocasiões, suas pernas públicas chamavam a atenção, em tempos tão recatados. Um dia, houve um concurso de beleza num pequeno clube do bairro. Com medo, talvez, de que uma derrota abalasse o prestígio de Marta, Djanira escalou Maria Júlia para concorrer. Ela ganhou. Tornou-se a única miss Júpiter de todos os tempos.
Do outro lado da rua, o casal Barreto – Antônio e Georgina – tinha três filhos: Lula, Papu e Linda, e um agregado, Amaro, irmão de Georgina. Esse não trabalhava. Um dia, em 1958, “seu” Barreto – comerciário – morreu. A família entrou em grave crise econômica. Para sobreviver, Georgina vendeu as galinhas e os periquitos que o marido criava no quintal. Tentou fazer Amaro conseguir um emprego, mas, não conseguindo, pôs a casa para alugar. Nunca mais soube deles.
Jairo, quando adulto, foi trabalhar em Maceió e ficou por lá. Mas, antes disso, morou um tempo com os pais Durval e Ester na rua chamada Olímpio. Ainda hoje é amigo de meu irmão, Ivan, e meu. Durval (gerente de uma distribuidora de bebidas) e Ester tinham outros quatro filhos: Haidé, Raquel, Fernando e Zélia. Todos se mudaram, em meados dos anos sessenta, para o Rio de Janeiro.
Todos, menos Jairo, que passou uma temporada conosco. Não quis sair do Recife por causa de Neide, com quem se casou. Frequentemente, driblando a vigilância da noiva, fazia programas noturnos e, ao chegar, de madrugada, repetia aos gritos “Ivanzinho, Gustavinho” enquanto caminhava da rua ao quarto onde dormíamos, externo à casa. Para afugentar os ladrões, explicava ele.
As casas dos irmãos Aguiar, Marcelo e Marcos, ficavam aos lados da minha. Marcelo votava em Adhemar de Barros, o governador rouba-mas-faz de São Paulo que se candidatou duas vezes a presidente. Quando saiu da Goodyear, a fábrica de pneus de que era representante comercial, comprou um carro Renault Rabo Quente. Tinha opiniões inflexíveis sobre política e moralidade, que defendia aos gritos. Eu jogava baralho com seu filho Zé Paulo. Ele sempre roubava. Não por isso, também era surrado regularmente pelo pai. Sem grandes resultados. Sua vida foi tumultuada.
Com Marcos, o segundo Aguiar, tive relações duradouras. Demasiadamente duradouras, receio. Ele era médico e uma de suas filhas viria a ser minha primeira mulher. Podia se irritar facilmente e, então, ser agressivo. Criava porcos no quintal. Para alimentá-los, recolhia restos de verduras e excrementos de galinha, punha tudo em um tonel e deixava a mistura apodrecer na calçada da casa. O mau cheiro resultante invadia as narinas de quem estivesse num raio de cem metros.
Seu repertório de excentricidades é inexcedível. Durante um tempo, foi radioamador, numa categoria abaixo da principal. Como falava alto, podíamos acompanhar suas conversas noturnas a certa distância. De uma feita, desentendeu-se em pleno ar com a vizinha Sofia e, literalmente, a mandou "à merda". A mulher ficou uma arara. Deve ter protestado em alguma instância, produzindo um pequeno escândalo. Em consequência, Marcos teve o registro cassado ou foi suspenso por um tempo.
Certa feita, ele colocou uma bezerra no Perfect. Algo, aparentemente, impossível, pois aquele era um carro muito pequeno. Noutra, alojou uma vaca na Kombi, cujo espaço era maior, mas, não tanto. A cabeça do animal ficou projetada sobre o banco da frente, entre o motorista e o acompanhante, como se fora a de um passageiro. Não sei se a vaca participou da conversa entre Marcos e seu genro Manuel, que estava no carro e me contou o episódio, anos atrás.
Muitos dos sucessivos automóveis do meu futuro sogro não tinham bomba de gasolina. Pelo menos um carecia de freios confiáveis. Outro, só engatava a primeira marcha se um menino se esgueirasse por baixo dele com uma chave inglesa e destravasse alguma coisa. Era o mesmo menino que, ajudado por terceiros, empurrava o carro para pô-lo em movimento, pois não havia motor de partida.
A bomba quebrada – isso aconteceu com um dos carros – foi substituída por uma lata de combustível soldada em cima do carburador. A gasolina fluía por gravidade. Exceto nas ladeiras, quando era preciso que alguém se sentasse ao lado do motor, com a tampa parcialmente levantada, e suprisse o combustível manualmente, enquanto a viagem prosseguia. Sou testemunha ocular de quase tudo isso. À época, havia pouca fiscalização nas estradas; quase nenhuma nas cidades. E Marcos sempre se safava, se parado fosse, distribuindo amostras grátis de remédios aos policiais.
A mulher, Carmita, prima de minha mãe, era mais inteligente que o marido. Os filhos Antônio e Marcos, quando meninos e rapazes, foram amigos muito próximos. Estudamos um ano juntos, 1964, no Colégio Salesiano. Mas a amizade não sobreviveu à minha separação, em 2001. O mais velho chegou a praticar espionagem, começando a carreira com a tomada de fotos de meu quintal, para instruir a tentativa de extorsão feita pela irmã, de quem eu estava a me divorciar. Nos últimos anos, nos reconciliamos, relativamente.
Simplício, um velho mecânico solteirão que comprava carros velhos para reformar e revender, residia na parte mais alta da rua. Quase certamente, era homossexual, um escândalo, naquele tempo. (A rua teve outro deles, este notório, muito mais tarde: Airton, codinomes Marlene e Prefeitura. Tocava piano muito bem, para a rua inteira ouvir.) Simplício morreu, provavelmente, durante a primeira metade dos anos cinquenta. Muito depois, veio morar na rua, mas em outra casa, Albertino, que também ganhava a vida reformando carros velhos.
A casa em frente à minha – uma casa grande, contrastante com as demais, devia ter sido sede de engenho – era habitada pela família Amorim: Wandelcy e Nelly, os pais; Waldir, Nellysinha, Walter e Walmir, os filhos. Waldir era introspectivo, passou um tempo no Seminário, leu o livro e se entusiasmou com Liberdade sem Medo, de A. S. Neil. Viria a ser médico. Sua história terminou em tragédia, há um ano, mais ou menos. Nellysinha nasceu sem antebraços e sem mãos, mas, admiravelmente, teve vida tanto quanto possível normal: ia às festas, dançava, namorou e se casou no tempo devido. Estudou e trabalhou como jornalista. Os outros dois filhos, Walter e Walmir, muito mais jovens do que eu, com quem, portanto, não convivi muito, viviam fazendo traquinagens. Os dois se tornaram, anos à frente, empresários de sucesso.
Havia gente merecedora de lembrança também nos arredores da rua Olímpio Tavares. A lanchonete em frente à igreja do Arraial, distante 200 metros de onde eu morava, foi construída por um certo José. Era muito frequentada por nós todos, sempre ávidos por conversas e cervejas. Depois, vendido em sucessivas operações, o lugar foi bater nas mãos de um sujeito esquisito, logo apelidado de Sujinho, ou Todo-Sujo. Fazia suas necessidades no chão da própria barraca, que passou a exalar uma autêntica catinga de mau cheiro, como diria Otávio Bifuca.
Nas reuniões dominicais na calçada da igreja (fingíamos ir à missa, mas estávamos de olho, mesmo, nas meninas), era impossível não encontrar Rui, autoconvencido de ser a pessoa mais feia do mundo. Com certa razão, devo admitir. Do mesmo modo que nunca deixávamos de ver Candinho, um débil mental com um olho aberto e outro fechado. Dizia ele, para não gastar os dois ao mesmo tempo. O vendedor de cavacos (aqueles biscoitinhos enrolados que ainda hoje compro nas ruas), frequentemente, terminava ali seu dia de serviço, vendendo-nos toda a mercadoria restante. Mercadoria que ele transportava num grande recipiente metálico cilíndrico pendurado às suas costas.
Não sei como os vizinhos da rua Olímpio Tavares nos viam, a meus pais, irmãos e a mim, nos idos de cinquenta e sessenta. Discretos; talvez nem fôssemos notados. Ou, quem sabe, contraditoriamente, nos tomassem por esnobes, pobres, presunçosos, medíocres. Cabe a eles dizer.
Bons tempos, os da miss Júpiter.



quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Falando inglês na Mangabeira de Cima

Uma rua chamada Olímpio (IV)
Gustavo Maia Gomes
(7/2/2018)
  
Até recentemente, esta casa era 
a que mais conservava os traços 
do desenho original da antiga rua 
Moura Esteves.(Foto Google Street 
View, c. 2016, processada)
Na rua Olímpio Tavares, em Casa Amarela, Recife, as casas originais foram construídas de uma vez, entre 1925 e 1926. Obedeciam ao mesmo projeto básico. Hoje, quase todas já foram reformadas, conservando pouco da antiga feição.

Os terrenos, contíguos ao histórico Arraial do Bom Jesus, deviam pertencer a um engenho de açúcar. Em algum momento que não pude precisar, tornaram-se propriedade do comerciante que viria dar seu nome à rua.

Olímpio Tavares (segundo soube por Paulo Henrique Maciel, cuja esposa é bisneta dele) nasceu em Goiana, PE, mas concentrou seus negócios no Rio Grande do Norte, embora tivesse mantido as ligações com seu estado de nascimento.

As casas foram feitas para alugar, preferencialmente, a estrangeiros. Eles gostavam de arrabaldes. Um anúncio da época, no Diário de Pernambuco (DP, 22/8/1926), revela isso: “Lindas casas, tipos colonial e bungalows (sic), próprias para estrangeiros e famílias de trato, no novo bairro Alto do Céu, rua Moura Esteves, em Mangabeira de Cima. Oitões livres, grande quintal, recém construídas”.

Na esperança de atrair os que não entendiam português, também se publicavam anúncios em inglês: "Houses to let. Modern bungalows with three bedrooms... cool and dry climate at the highest point of Casa Amarela" (DP, 19/7/1927). Pois é, eu morava no ponto culminante do bairro e não sabia.

Moura Esteves era como se chamava a rua até 1929, quando ela tomou o nome que tem até hoje: Olímpio Tavares (Jornal do Recife, 8/12/1929). Surpreendeu-me a localização em “Mangabeira de Cima”, um nome que desapareceu completamente. Ainda existe uma Mangabeira, bairro do Recife – seria a “Mangabeira de Baixo”? Não durou uma eternidade: pouco tempo depois, o mesmo jornal já localizava a rua em Casa Amarela (DP, 21/12/1926).

Para despertar interesse, a família proprietária enfatizava que as casas dispunham do “bonde de Casa Amarela, a cem metros de distância”. Além disso (DP, 6/1/1927), que eram “modernas, com boas acomodações, saneadas, com luz, água e entrada para automóveis”. Essa última devia ser algo novo, realmente. Não eram poucos, portanto, os atrativos. De fato, em curto intervalo, todas as casas estavam alugadas, parecendo que o projeto foi um sucesso. Somente 15 anos mais tarde apareceram os primeiros anúncios de vendas (DP, 5/8/1941).

Meus pais, Mauro e Stella, meu irmão, Ivan Pedrosa Maia Gomes, e eu devemos ter nos mudado para a rua Olímpio Tavares (vindos da rua Álvares de Azevedo, em Santo Amaro) em ano muito próximo a 1950. Pouco depois de a moradora da casa 113 (a única que, provavelmente, já existia antes de 1925; devia ser a sede do engenho), Haidé Gomes Cabral, ter pedido financiamento bancário para a compra de imóvel: 120.000 cruzeiros, ou 315 salários mínimos da época (DP, 14/2/1950).

Ainda me lembro da rua com piso de terra e as sarjetas dos esgotos colocadas em nível mais alto que o do solo. Em junho de 1950, a Câmara Municipal determinou que a Olímpio Tavares fosse pavimentada. Isso, entretanto, só aconteceu muito depois. Provavelmente, em 1954, estimulada pela comemoração dos 300 anos da vitória sobre os holandeses. A Rua Olímpio Tavares fica ao lado do Sítio Trindade, local onde o Capitão Matias de Albuquerque, uma espécie de governador, da época, refugiou-se, após ser expulso de Olinda pelos batavos.

Só tenho boas recordações daquela rua, nos anos em que lá morei, como criança, adolescente e adulto jovem. Mas, nem todos concordariam comigo. Severino Barbosa, um jornalista muito lido, então, publicou, em 1967, um texto ácido em que dizia: “A situação lá pela rua Olímpio Tavares anda de mal a pior. Lixo, lixo é o problema. Mas não é lixinho besta. É muito lixo, lixo de uma rua inteira, que vive entregue ao Deus dará. Além do mais, na rua Olímpio Tavares também falta luz. É uma calamidade” (DP, 11/7/1967)

Nunca achei que houvesse calamidade nenhuma ali.