quinta-feira, 25 de maio de 2017

Luís Alípio de Barros e a gastronomia sociológica

Gustavo Maia Gomes

Luís Alípio Gomes de Barros (1922-91) foi um jornalista nascido na Usina Campo Verde, em Murici, Alagoas, que fez carreira no Rio de Janeiro. Começou em O Cruzeiro (1943) e, a partir de 1951, mudou-se para Última Hora, jornal que ajudou a fundar. Era filho de Laurentino Gomes de Barros e de Amália Maia Gomes, meus tios-avôs. Do meio para o fim da vida, tornou-se mais conhecido pelo pseudônimo que adotou (Comendador Ventura) do que pelo seu verdadeiro nome.
Uma prima (Lisiana Cansanção) o conheceu em Maceió, na antiga residência dos Gomes de Barros, na Praça Sinimbu. Não deve ter sido a única. Arnoldo Gomes de Barros é seu sobrinho e, como estudante (se o entendi direito), morou com ele um tempo. Eu não o conheci. É uma pena, pois estive no Rio de Janeiro muitas vezes enquanto Luís Alípio ainda vivia e trabalhava. Teria sido um prazer encontrá-lo se, ao menos, soubesse de sua existência. Logo eu, um jornalista por vocação travestido em professor de Economia.
Luís Alípio gostava de literatura, cinema, turismo, vida noturna, boas companhias e de se deliciar com bons pratos e excelentes vinhos. Sua seção de gastronomia “Não Morra pela Boca” foi publicada durante mais de trinta anos na Última Hora do Rio de Janeiro.
Vez por outra, ele deixava de lado o dia-a-dia dos restaurantes e bares do Rio de Janeiro para se ocupar dos aspectos, por assim dizer, mais nobres da gastronomia. Era quando, por exemplo, amparado em Gilberto Freyre (1900-87) ou em Osvaldo Orico (1900-81), falava sobre as raízes das cozinhas pernambucana e amazônica. Ou, aproveitando o que aprendera numa viagem, discorria sobre os pratos e temperos de Nova Orleans, uma cidade, originalmente, francesa dos Estados Unidos da América.
A primeira Não Morra Pela Boca (ainda uma subseção dentro da “Ronda da Meia Noite”, também do Comendador Ventura) que consegui localizar na Hemeroteca Digital da BN foi a 1/6/1954. A última, a de 29/11/1984. Dou exemplos das preocupações gastrônomo-sociológicas de Luís Alípio, transcrevendo abaixo trechos seus publicados na Última Hora.
Cozinha pernambucana
No seu livro Açúcar: Em torno da Etnografia, da História e da Sociologia do Doce no Nordeste Canavieiro do Brasil, diz Luis Alípio, que está a merecer uma reedição, revista e ampliada, Gilberto Freyre, o mestre de Apipucos, escreve que "a cozinha das casas-grandes de Pernambuco" (e, por extensão, acrescentamos nós, as da Paraíba e de Alagoas, já que tudo era a mesma coisa, então) "nasceu e, debaixo dos cajueiros, se desenvolveu à sombra dos coqueiros, com o canavial sempre de lado a lhe fornecer açúcar em abundância; e perto – na água do mar, do rio, das lagoas, no mangue, na horta, na mata – quase ao alcance da mão da cozinheira, o melhor pitu do mundo (o pitu do Rio Uma)” – ao qual acrescentamos, que nos permita o mestre, os do Rio Mundaú [AL], também extraordinários –, “a cavala perna-de-moça, a cioba, o caranguejo, o siri, o guaiamum, o sururu, a curimã, a carapeba, o araçá, o jenipapo, a manga-jasmim, a goiaba, o abacaxi, a canela, a fruta-pão, a jaca, o sapoti, o abacate, o tamarindo, o quiabo, a macaxeira, o jerimum”. [Comendador Ventura (Luís Alípio de Barros). “Caju, coco, açúcar – tradição pernambucana”. Seção Não Morra Pela Boca, Última Hora, 11/4/1984, pág. 12.]
Cozinha amazônica
E, apenas alguns meses depois: “O que torna apetecível, aprazível e gostosa a cozinha amazônica é que ela não é apenas uma culinária de ‘mesa posta’, mas também uma cozinha ao ar livre, que se pode apreciar em tabuleiros, por toda parte. Ao longo das docas. Nas passagens dos mercados. À porta das igrejas. Nas calçadas dos largos. Na relva dos jardins públicos. Na esquina de certas ruas. Em qualquer ponto onde vierem pousar as tacacazeiras com as panelas amarradas em toalhas, para conservar o calor, ou com os fogareiros, para esquentar o munguzá, os beijus, ou ferver as pupunhas e os piquiás que trazem nos paneiros.”
“O tacacá, a bebida que compete com o açaí em procura e popularidade, com uma diferença: o açaí é um refresco, apesar de suas calorias; ao passo que o tacacá, com seu molho de pimenta, seus camarões e seu jambu, é uma infusão explosiva, capaz de por si só substituir o jantar”. [Comendador Ventura (Luís Alípio de Barros). “Em torno do tacacá e outros comes e bebes”. Seção Não Morra Pela Boca, Última Hora, 27/6/1984, pág. 12, citando Osvaldo Orico, Cozinha Amazônica: Uma autobiografia do paladar. Belém, Universidade Federal do Pará, 1972.]
Culinária de Nova Orleans
“Se há uma cidade do mundo que merece um roteiro gastronômico, esta é, sem dúvida, Nova Orleans” [Estados Unidos], escreveu Luís Alípio no Não Morra pela Boca de 13/4/1984. Ele tinha ido a trabalho visitar a cidade, de onde mandou para a Última Hora, além de sua coluna gastronômica, uma matéria sobre a Feira Mundial da Louisiana, que então se realizava. E merece esse roteiro, continuou, “não apenas por suas cozinhas creole ou cajun”, mas, sobretudo, “porque seus frutos do mar são notáveis, os peixes servem sempre para pratos irresistíveis, as ostras são enormes e incomparáveis e há uma infinidade de restaurantes onde se come decentemente”.
A cozinha creole -- esclarece o jornalista -- é aquela desenvolvida pelos franceses e espanhóis que se estabeleceram em Nova Orleans e [pelos] escravos negros que ali viviam e serviam às famílias [brancas]. A cozinha cajun [por seu turno], originou-se quando o povo da França do Sul migrou e se estabeleceu na Nova Escócia, em 1760.
Durante 200 anos ele viveu lá [na Nova Escócia, Canadá] e desenvolveu um estilo de cozinhar inerente ao seu país de origem, mas adaptado aos produtos regionais disponíveis. Quando os Acadians (ou cajuns, como passaram a ser chamados) foram mais tarde expulsos da Nova Escócia e se restabeleceram na Louisiana, passaram a temperar suas caças e seus peixes com cayenne, tabasco e algumas ervas e exóticos ingredientes introduzidos pelas tribos indígenas locais. Na sua essência, a cozinha cajun é uma cozinha campestre. A cozinha creole [por sua vez] é tipificada mais por seus molhos e pelos indefectíveis red-beans e arroz. [Comendador Ventura (Luís Alípio de Barros). “Em Nova Orleans”. Não Morra Pela Boca, Última Hora, 13/4/1984, pág. 11.] 
Comer bem é um prazer. Com o prato temperado pela Sociologia e a História, ainda mais.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

O Dia D (Deles) e o Dia N (Nosso)

Gustavo Maia Gomes

Em 6 de junho de 1944, o Dia D, quatorze países aliados, dentre eles Austrália, Canadá, Bélgica, França, Grécia, Nova Zelândia e Noruega, sob o comando dos Estados Unidos e da Grã Bretanha, deram início à invasão da Normandia, abrindo a frente Oeste na guerra contra a Alemanha.
A operação contou com cinco mil navios, quatro mil balsas e onze mil aviões. Cem mil soldados desembarcaram nas praias francesas, no Dia D. Em uma semana, seriam trezentos mil; em julho, um milhão. Sua missão era vencer a guerra, destruir o monstro nazista, restabelecer a paz, a democracia e a prosperidade no continente.
Um ano depois, haviam conseguido tudo isso, na Europa ocidental, pelo menos. Ali, nos dias de hoje, a vida deve ser boa: ninguém que mora na Bélgica, França, Grécia, Noruega (ou Grã Bretanha, Alemanha, Holanda...) quer fugir. Ao contrário, muita gente morre na tentativa de se juntar a essas pessoas ricas, livres e felizes.
Em 10 de maio de 2017, o Dia N, quatorze entidades suspeitas, dentre elas a CUT, o MST, a CNBB, sob o comando do Partido dos Trabalhadores nos Sindicatos e no Governo, deram início à invasão de Curitiba, abrindo mais uma frente na guerra contra a lei, a decência e a esperança de que, um dia, este país deixe de ser um covil de ladrões.
A operação juntou cinco mil ônibus alugados com o dinheiro público do imposto sindical, quatro mil balsas movidas a propina, e onze mil aviões que nunca irão voar, pois o dinheiro de sua fabricação foi desviado. Cem mil pelegos comendo mortadela e mais outros tantos idiotas úteis fedendo a Marx desembarcaram nas praias paranaenses, no Dia N. Em uma semana, terão ido embora; em julho, estarão queimando pneus noutro lugar. Sua missão era defender um réu acusado de nos roubar, desta forma preparando o caminho para restabelecer a cleptocracia no continente.
Um ano depois, sonham ter conseguido tudo isso, no Brasil continental. Aqui, com o lulismo restaurado, a vida será boa para quem tiver uma boquinha no governo, ou uma bolsa família reajustada a cada mês. Fora esses, ninguém há de querer ficar. Muita gente será barrada na tentativa de se juntar às pessoas ricas, livres e felizes... dos Estados Unidos... da Europa ocidental...
(Escrito na madrugada do Dia N, 10/5/2917)

sábado, 6 de maio de 2017

Fogo na avenida

Gustavo Maia Gomes

Wandeck Santiago. Pernambuco em Chamas:
A intervenção dos EUA e o golpe de 1964.

Recife, Cepe Editora, 2016
Aos que se interessam pela história política brasileira, recomendo a leitura de Wandeck Santiago, Pernambuco em Chamas: A intervenção dos EUA e o golpe de 1964. Eu o li com grande proveito. Não concordo em cem por cento com o autor. Longe disso. O subtítulo, por exemplo, me desagrada um pouco. Nada contra o nome “golpe” aplicado àquele episódio; a palavra “intervenção”, porém, me parece exagerada. Eu restringiria este termo a atos de força promovidos por um agente externo que impõem ou tentam impor ao inimigo o resultado buscado pelo agressor. Não devo estar sozinho nessa interpretação. Precisamos usar termos diferentes para fenômenos desiguais – e existe a palavra “interferência”. Intervenção é uma coisa – implica o uso da força bruta; interferência, outra, mais branda.

Nesse sentido, não houve intervenção de qualquer país estrangeiro no Brasil, antes ou depois do golpe de 1964. Poderia ter ocorrido. Como sabemos (e Santiago também, pág. 182), “petroleiros da Marinha” dos Estados Unidos trazendo armas e munições chegaram a iniciar viagem às costas brasileiras, para apoiar o golpe militar, na hipótese de este enfrentar reação. Mas o plano foi cancelado, por desnecessário: o governo Goulart desmanchou em um dia, sem oferecer resistência, e a frota americana deu meia volta. Não se consumou a intervenção. Interferência, sim, houve, e muita, como seria de se esperar naquele mundo imerso na Guerra Fria, a confrontação ideológica e sempre perigosamente próxima de se tornar uma guerra de verdade, entre os Estados Unidos e a União Soviética. Só que a interferência veio dos dois lados, não apenas da potência americana.

A OUTRA FACE DA VERDADE

Essa querela em torno de um subtítulo talvez não seja irrelevante. Pois, os mesmos fatos que Wandeck Santiago tão bem descreve e documenta sobre as tentativas de os Estados Unidos influenciarem os acontecimentos políticos no Brasil poderiam ter sido interpretados de maneira diferente daquela sugerida pelo rótulo “intervenção”. Para tanto, seria preciso que o autor desse um peso maior ao fato de que, naquele clima de Guerra Fria, qualquer política nacional (ainda mais de países grandes, como o Brasil) fazia, inevitavelmente, parte do enredo maior da disputa entre EUA e URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

Ele está consciente disso. (Leia-se a primeira frase do Prefácio, assinado por Pablo Porfírio: “este livro é um thriller [narrativa de suspense] sobre a Guerra Fria”. Ou o que o próprio Wandeck escreve à pág. 39, falando sobre a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro como um “efeito” da confrontação pós-1945 entre os EUA e a URSS). Mas, por algum motivo, terminei de ler o livro com a sensação de que o autor tinha tentado me convencer de que houve uma “intervenção” – eu preferiria dizer interferência – dos Estados Unidos na política brasileira, mas não ocorreu nada parecido do lado oposto: a URSS e/ou, dava no mesmo, Cuba.

E daí? Daí que uma narrativa mais equilibrada teria de também mencionar a interferência soviética (leia-se, russa) sobre a política brasileira. Mesmo que este não fosse o objeto principal do livro, a ressalva precisaria aparecer (aqui e ali, é feita, mas sem a necessária ênfase, acho eu), para que o leitor de hoje, provavelmente, nascido depois de 1964, pudesse ver os acontecimentos narrados sob uma perspectiva mais verdadeira. O paradoxo é que a URSS influenciava a política brasileira tanto quanto – ou mais do que  os Estados Unidos. Mesmo que os detalhes dessa interferência nunca venham a ser completamente conhecidos, alguns aspectos dela eram facilmente observáveis, ou vieram a público nos anos posteriores ao golpe. Por exemplo:

(1) O Partido Comunista Brasileiro (obediente a Moscou), na clandestinidade, mas com enorme capacidade de doutrinar ideologicamente e de mobilizar as forças da esquerda, nunca deixou de atuar. Wandeck escreve (pág. 133), citando José Arlindo Soares: “Na Frente do Recife [aliança política de esquerda], que vencera as três últimas eleições locais, o PCB ocupava posição de destaque. (...) nenhuma dessas vitórias teria sido obtida ‘sem o Partidão comandando a famosa Frente’”.

(2) O governo de Cuba também apoiou as forças que visavam dar o golpe da esquerda, oposto ao que, efetivamente, ocorreu. Cito Wandeck Santiago: “Em 1963, um grupo que atuava dentro das Ligas [Camponesas] fez a opção pela luta armada. Enviou militantes para treinamento em Cuba e montou campos de preparação da guerrilha no Brasil” (pág. 70). Isso, convenhamos, era bem mais grave do que distribuir leite em pó para crianças pobres, uma das formas mencionadas no livro da “intervenção” dos EUA na política brasileira.

FATORES “CULTURAIS”

Além do que foi mencionado acima, embora aqui não se possa falar de “interferência” deliberada de uma potência estrangeira, havia na cultura política brasileira fatores que favoreciam a penetração das ideias com as quais a URSS simpatizava. A influência desses fatores na formação de uma opinião pública simpática às teses de esquerda era muito maior do que a que poderia ser conseguida com as ações de “intervenção” (segundo Wandeck) dos EUA na política nacional.

Por um lado, para a imensa maioria da intelectualidade brasileira, ontem, como hoje, ser antiamericano era (ainda é) uma obrigação moral. Pode-se imaginar o que isso significa em termos de predisposição para votar ou apoiar ações violentas em favor da esquerda. Por outro lado, também produzia esse mesmo efeito a facilidade de atrair adeptos que o discurso populista, assumido integralmente por João Goulart nos seus últimos meses como presidente, possuía. Em 1964, como hoje, qualquer político que prometesse aumentar salários, confiscar propriedades, fazer “reformas de base”, limitar remessa de lucros para o Exterior, e outras coisas semelhantes, tinha popularidade garantida. E essas eram teses caras à União Soviética, pois sua difusão alimentava a crise econômica que o país enfrentava nos anos sessenta, com enorme potencial de desestabilização política e, portanto, de redução ou perda de influência dos EUA no Brasil.

Eu gostaria de ter encontrado uma ponderação maior de tudo isso no Pernambuco em chamas de Wandeck Santiago. Se ele o tivesse feito, os fatos que trouxe a tona ou nos fez relembrar se tornariam ainda mais significativos. Mas o livro é bom, mesmo com esse viés. Devo dizer, em defesa do autor, que eu também gostava de acreditar na “intervenção” dos Estados Unidos como explicação universal para o golpe militar. Repetir aquela visão simplista do complexo processo político que, meio século depois, nos traria o flagelo dos governos petistas, dava a todos nós o conforto das certezas absolutas, mesmo quando falsas.

Precisei me estender sobre esses aspectos para deixar claros meus argumentos. Ficou faltando espaço, infelizmente, para uma apreciação mais demorada dos pontos altos do livro – e são muitos. A pesquisa está bem documentada; o estilo é fluente; muitos fatos descritos não eram de conhecimento geral; é preciosa a recordação de que, há setenta anos, estávamos discutindo e tentando implementar ações para estimular o desenvolvimento econômico (vide a Sudene, Celso Furtado, o Relatório Merwin Bohan). Que contraste com o discurso dos tempos atuais, em que o problema de superar a pobreza dos brasileiros e nordestinos foi reduzido à distribuição das esmolas do Bolsa Família.

Considero que Wandeck Santiago, a quem eu já conhecia como grande jornalista, elevou ainda mais sua reputação com este livro, que não trata de incêndios nem apela para o Corpo de Bombeiros, mas inclui as chamas de uma estranha passeata noturna feita no Recife, em 1963 (possivelmente, na Avenida Conde da Boa Vista), por camponeses nem sempre tão camponeses assim (na foto, muitos parecem estudantes de classe média), conduzindo pedaços de pau pegando fogo.

Uma nota final. Li o que Wandeck Santiago escreveu à pag. 95 de seu livro: “No auge da Guerra Fria, é de se supor que o governo soviético também estivesse mantendo contatos e encontros com autoridades e políticos brasileiros. A URSS, porém, nunca teve política de liberação de documentos sigilosos, diferentemente dos EUA”. Pode ser um reconhecimento parcial (e uma tentativa de justificação) de que seu livro sofre mesmo de certo desbalanceamento. Que, entretanto, é amplamente compensado pelos pontos positivos a que fiz referência. E por muitos outros.