quarta-feira, 15 de março de 2017

Mario Acorrentado Brandão

Gustavo Maia Gomes

(Versão preliminar de capítulo do livro em preparo Uma noite em Anhumas. Das usinas de açúcar ao predomínio urbano no Nordeste canavieiro: Histórias familiares, 1890-2001)


Mario Brandão (1931)




Um homem talentoso, sonhador, inquieto, boêmio, farrista, brigão, assassino, sofredor, resistente, suicida, preso em seus próprios grilhões. Assim foi Mario Brandão Maia Gomes (1906-43), filho de Alípio Maia Gomes (1878-1916) e Luíza Pires Guimarães Brandão (1887-1910). Nascido na Bahia, precursor do modernismo em Alagoas, autor de livros no Rio de Janeiro, jornalista nos três estados, Mario poderia ter atingido altos patamares na literatura, ou no jornalismo, ou se sustentado com os ganhos de um emprego estável, ou sido uma pessoa feliz, ou tudo isso ao mesmo tempo. Não conseguiu. Nunca chegou a escritor de renome; sua carreira de jornalista foi, repetidamente, segmentada em pequenos intervalos; só teve empregos precários; jamais alcançou felicidade duradoura. Vivia metido em confusões horríveis, das quais sempre saía pior do que entrava. De 1935 a 1938 – meros três anos, portanto – foi ferido na boca, perdeu um braço destruído a tiros, cometeu assassinato sem motivo aparente, ficou na cadeia ou no manicômio judiciário um tempo, dali fugiu duas vezes e tentou se suicidar outras tantas.

A tentação suicida

As duas tentativas de se matar que perpetrou quando estava preso não seriam as últimas. Ao longo da vida, Mario Brandão cultivou um permanente namoro com a ideia de suicídio – até ser plenamente correspondido por ela. Não exagero. No mais antigo texto dele que pude localizar, está escrito:
Avalie só! A mulher, assim que lhe beijei, respeitosamente, a mão, antes mesmo de me dizer qualquer coisa, suicidou-se estupidamente, seccionando a carótida com uma segura navalhada. (...) Que fiz eu? Suicidei-me também.[i]
Se havia menção ficcional a suicídio no seu conto de estreia, nada muito diferente se deveria esperar da última notícia sobre o homem em carne e osso. Assim, em 14 de setembro de 1943, vários jornais cariocas publicaram matérias como esta:
Foi socorrido, ontem à noite, o Sr. Mário Brandão, jornalista, casado, apresentando sério ferimento inciso no pescoço, provocado por navalha. A vítima tentou suicidar-se em sua residência.[ii]
Era a quarta vez que Mario tentava o suicídio; a terceira tinha acontecido sete meses antes. Seria, também, a última, pois ele morreria poucas horas depois. A fixação com a ideia de dar cabo da própria vida parece ter-lhe acompanhado durante quase toda a existência. Assim, apenas duas semanas antes de se matar, publicou um conto no Diário da Noite, do Rio de Janeiro, dedicado “à memória de minha filhinha que está no Céu”. A menina Maiby morreu, desconheço em que circunstâncias, antes de completar dois anos. (Houve a versão de que ele a tentou matar, assim como à mãe da pequena, mas não encontrei nenhuma evidência disso nas muitas referências que, ao longo dos anos, a imprensa do Rio de Janeiro fez a Mario Brandão e aos episódios rocambolescos de sua vida.) O conto “Maiby” alude ao tempo em que seu autor ainda era um adolescente. Começa assim:
Naquele ano, 1922, quando fui passar as férias no engenho, levei na cabeça a ideia de enforcar-me na árvore mais bela que eu tinha visto. (...) Seria melhor que um tiro na cabeça, melhor que uma facada no coração, melhor que o fogo, a água, os venenos e todos os numerosos e desaconselháveis recursos que o bicho homem lança mão contra esse fastio de viver.[iii]
Tais impulsos suicidas, embora dissimulados em composições literárias, são evidências de que o escritor nascido na Bahia foi um homem atormentado. Isso pode ter tido muito a ver com duas ocorrências trágicas de sua infância: a perda da mãe, aos quatro anos, e do pai, aos dez. Foi com essa tenra idade – e em circunstâncias, por si sós, desalentadoras – que ele precisou enfrentar a vida. Não conheço os detalhes de como o fez; as linhas gerais, sim. Em 1916, quando ficou órfão também do pai, Mario tinha cinco irmãos: Elmano (o único, além dele, filho de Luíza), Inah, Yara, Francisco e Luiz (filhos de Elisette Cardozo, a segunda mulher de Alípio). É provável que as seis crianças morassem na mesma casa. Surpreenderia pouco saber que Mario e Elmano, naquele momento, se tivessem sentido desamparados. Não eram filhos de Elisette. O pai não lhes deixara na Bahia um parente sequer com quem pudessem contar. (Em Alagoas, sim, mas eram mundos distantes.) Os Brandão ainda deviam ser importantes em Santo Amaro, porém o avô materno dos dois meninos, Rodrigo (1865-1911), pessoa de maior destaque da família, havia morrido há cinco anos. Desconheço se os seus descendentes se interessavam pelos filhos de Alípio e Luíza.[iv]
Sim, Mario Brandão Maia Gomes teve um começo de vida difícil. Dali para frente, entretanto, o que ele viria a ser dependeria muito de sua fortaleza interior e, claro, do suporte que pudesse receber da madrasta, dos irmãos (todos mais novos do que ele), de outros parentes, talvez. Não sei o grau em que esse apoio existiu, mas posso constatar pela sua história subsequente que aquele menino de dez anos nunca se encontrou na vida. Tentar, ele tentou. Trocando de cidades, por exemplo. Aos vinte anos (1926), era estudante em Maceió, aonde teria ido em busca do amparo familiar que, talvez, lhe faltasse na Bahia. (São hipóteses, claro, não tenho como afirmar inequivocamente quais eram sua real situação e intenções.) Se foi isso mesmo, tudo indica que não encontrou o que procurava. Tentou, em seguida (1929 ou 1930), o Rio de Janeiro. Passados apenas alguns anos, retornou à Bahia (1932 ou 1933). Em 1935, estava de novo morando no Rio; pouco depois (1936), em Maceió, tendo passado, entrementes, algum tempo na sua cidade natal, Santo Amaro. Em cada um desses lugares, foi estudante (quando jovem) ou jornalista, mas, sobretudo, foi boêmio e brigão – e sofreu as consequências que deveria esperar, em ferimentos e, após cometer assassinato, em meses de reclusão. Se mudar de cidade era uma estratégia para se livrar do desassossego, não parecia estar funcionando. Apesar disso, ele continuou tentando.[v]
Saído do asilo judicial, na verdade, uma prisão, para onde foi mandado após assassinar um motorista em Maceió (1937), voltou para o Rio em 1942. Desta feita, trabalhou como redator avulso do Diário da Noite, jornal em que publicou matérias sobre assuntos variados e se engajou em campanhas cívicas que incluíam leilões de livros e doações de metais e de aviões, a fim de ajudar na preparação da guerra em que o Brasil estava na iminência de entrar. Também fazia palestras. Sobre o quê? Em edição de maio daquele ano, deparei-me com uma das primeiras notícias relativas a ele, nessa sua nova e derradeira fase carioca: “Literatura psicanalítica: Conferência do jornalista Mario Brandão”.
Realizou-se hoje (30/5/1942) no salão nobre do Liceu Literário Português, uma conferência do jornalista alagoano (sic) Mario Brandão, a qual foi muito concorrida, estando presentes nomes de valor da nossa literatura e também estudiosos em questões de psicanálise. O conferencista intitulou seu trabalho “Literatura psicanalítica”, criando um personagem para mostrar a influência freudiana na literatura.[vi]
Pobre Mario: órfão de pai e mãe, com um braço a menos, a boca deformada por um tiro e já trazendo no currículo um assassinato e duas tentativas de suicídio, ele era a própria encarnação de um personagem freudiano. Sabia do que estava falando.

Reforçando a memória

Embora as lembranças dos descendentes baianos do meu tio-avô Alípio Maia Gomes estejam bastante diluídas (dos com quem eu falei ou me correspondi por meio eletrônico, somente uma das netas, Elisa, filha de Yara, tinha informações – rarefeitas, porém – sobre ele e sobre Mario Brandão Maia Gomes), consegui uma prova indiscutível de que o segundo era filho do primeiro. Foi, quase, um golpe de sorte: num artigo assinado por Mario e publicado no Diário da Noite do Rio de Janeiro, em 1942, assim se expressou o jornalista:
O que o Dr. Goebbels ainda não chegou a afirmar a respeito das virtudes do nazismo, Furier (sic) proclamou a propósito das sombras eternas nas quais espontaneamente mergulhou Catão, inimigo de Cartago, depois de reler um livro de Platão. Furier (sic) me fora apresentado pelo meu próprio pai, o Dr. Alipio Maia Gomes, em sua tese de doutoramento defendida em 1904 na Faculdade de Medicina da velha Bahia, intitulada “O Espiritismo em face da Medicina”.[vii]
Posteriormente a esse achado, Elisa Cardozo Brandão (apesar do sobrenome, ela descende do casamento de Alípio com Elisette Cardozo – o nome Brandão vem de seu pai, como fica claro da citação a seguir) me enviou esta mensagem (intermediada pelo neto, Danilo Brandão). Copio com as edições imprescindíveis:
Os filhos [do primeiro casamento de Alípio Maia Gomes] se chamavam Elmano e Mario Brandão. Ele [Mario] era escritor e meu pai, João Falcão Brandão Júnior, o “descobriu” no Rio de Janeiro boêmio, esquivando-se, para não ser reconhecido. Ele não usava o sobrenome Maia Gomes. Tinha lançado um livro com o título Freud e o meu personagem Emerenciano.[viii]
O pai de Elisa avistou ou encontrou Mario Brandão entre novembro de 1942 e os primeiros meses de 1943, quando o livro a que ela se refere foi lançado, no Rio de Janeiro. Como confirmação adicional, se necessária fosse, à tese da filiação de Mario Brandão Maia Gomes, no mesmo artigo citado anteriormente, ele também escreveu que “ontem, na Urca, na casa de um neto e afilhado de Ferreira Viana, meu primo e amigo Sr. Paulo José Pires Brandão...” Primo por parte de mãe, cujo nome completo era Luíza Pires Guimarães Brandão. Por outro lado, sabemos, sim, desde O trem para Branquinha, que Alípio Maia Gomes tratou, em sua tese de médico, dos “fenômenos preternaturais diante da arte que hoje professo”. O filho Mario, anos depois, escreveria um conto intitulado “Espiritismo”, que incluiu no seu primeiro livro e numa antologia de contos alagoanos.[ix]
Também os anos de nascimento e morte de Mario Brandão eu os descobri pelos jornais. O da morte (1943), como já foi citado, teve ampla divulgação na imprensa. Quanto ao de nascimento, veja-se, por exemplo, em A Noite (RJ) de 8/11/1935:
Madrugada de sangue: Um guarda civil prostra um jovem, a tiros, na Praça Paris. (...) O ferido chama-se Mario Brandão, é solteiro, conta 29 anos e trabalha num pequeno semanário que aqui se publica.[x]
Ou no Diário de Notícias (RJ) de 2/2/1943:
Mario Brandão, casado, de 37 anos, morador à Avenida Mem de Sá, tentou contra a vida ingerindo certa quantidade de um tóxico. Socorrido por uma ambulância, foi conduzido para o posto central da assistência, sendo posto fora de perigo.[xi]
Essa notícia se refere à terceira tentativa de suicídio de Mario Brandão, não à última. Nos dois casos referidos nas citações, fazendo as contas, chegamos a 1906 como ano de seu nascimento.

Primeiras andanças

Desconheço quando, exatamente, o filho de Alípio e Luíza saiu de Santo Amaro, Bahia, e bateu com os costados em Maceió. De positivo, tenho a informação de que em 1926 ele estava na capital alagoana. Pode ter ido em busca da proteção familiar, como sugeri acima. Se a encontrou, é difícil saber. Mas, mesmo que o amparo recebido tenha sido inferior ao esperado, ele logo descobriria que Maceió (mais do que Santo Amaro, embora menos, suponho, do que Salvador) tinha certos atrativos para um jovem com propensões literárias como era, certamente, o seu caso.
Em 1919, fora fundada a Academia Alagoana de Letras; em algum dos primeiros 1920, criou-se a Academia dos Dez Unidos; em meados dessa década, já existia o Centro de Estudantes de Alagoas, entidade com fins (também?) literários a que Mario Brandão se associou, por pouco tempo. Ele estava entre os dissidentes do Centro responsáveis pela criação, em junho de 1926, do Cenáculo Alagoano de Letras, entidade inspirada na Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922) e no Congresso Regionalista do Recife (fevereiro de 1926), que pretendia se opor ao “conservadorismo” da Academia Alagoana de Letras.
Compunham o grupo fundador A. S. Mendonça Junior, Zeferino Lavanère Machado, José Lima, Arnaldo Lopes de Farias, José Salgado Bastos e Emilio Eliseu de Maya, além do próprio Mário Brandão Maia Gomes (que, inclusive, participou da primeira diretoria, como secretário). Logo depois, entraram Valdemar Cavalcanti, Yolanda Mendonça, Salustiano Euzébio de Araújo Barros e outros. O Cenáculo foi criado na casa do irmão de Alípio e tio de Mario, José Gomes de Oliveira Maia, nome de batismo de José Maia Gomes (como ele, posteriormente, veio a se identificar), na antiga Rua das Verduras, atual Pontes de Miranda, em Maceió. Teria o coronel cedido sua casa a pedido do sobrinho? Possivelmente, sim, embora Emílio de Maya, filho de Alfredo de Maya, um amigo da família Maia Gomes a quem fiz várias referências em O trem para Branquinha, também possa ter tido um papel importante nesse episódio.[xii]
Em 1927, mais uma associação, o Grêmio Guimarães Passos, entrou em cena. Élcio de Gusmão Verçosa relaciona essa onda de iniciativas literárias à população de gente formada (bacharéis, sobretudo) que havia em Maceió, à época: “De fato, de 1880 até 1922, só a Faculdade de Direito do Recife diplomou 342 alagoanos”. (Meu avô, Nominando Maia Gomes, estava entre eles; não deve ter sido o único parente.) Além desses, havia, também, “os médicos formados na Bahia e alguns outros doutores diplomados no Rio de Janeiro e em outros centros urbanos brasileiros de maior destaque”. Nessas condições, conclui Verçosa, “o número de poetas crescia à medida que aumentava [a quantidade] de bacharéis que circulavam em Maceió”. E, no mesmo sentido, Tadeu Rocha, citado por Verçosa: “se o bacharel Júlio Auto fazia versos, porque era mesmo poeta, muitos outros bachareis escreviam sonetos porque eram advogados, juízes e funcionários públicos”. O que tinha sido modismo acabou virando obrigação: “não se concebia um bom bacharel que não cometesse alguns versos”.[xiii]
Tudo isso fazia parte de um processo maior, já em curso, que estava levando aquela sociedade, na origem, quase exclusivamente, canavieiro-açucareira, a fazer a travessia “da usina ao predomínio urbano”. Neste novo mundo, cada vez mais, o bacharel – homem de formação superior, morador da cidade, muitas vezes, detentor de um cargo de mando no governo ou de um bom emprego público – iria ter ascensão sobre seus pais, avós e irmãos plantadores de cana e mesmo fabricantes de açúcar. Ainda não na Maceió dos anos 1920, certamente, mas, em breve, sim, também ali. De qualquer forma, era para tornar inequívoca sua superioridade intelectual sobre os que ainda viviam no campo, ou tinham empregos subalternos nas cidades, que os bacharéis faziam versos. E também porque gostavam, sem dúvida. Nisso aí, ninguém podia competir com eles. As mocinhas suspiravam ao ouvir seus amores secretos declamarem sonetos parnasianos ou poemas modernistas: casar com um doutor passou a ser o sonho de muitas delas. Esse ambiente contagiou, inclusive, os estudantes secundaristas, como Mario Brandão e vários de seus companheiros. Raras vezes antes, em Maceió ou no mundo, o poder da palavra havia sido tão grande. Nem a literatura tão valorizada.
Mas, o Cenáculo Alagoano de Letras teve vida curta. Promoveu, em 1928, uma Festa da Arte Nova (espécie de réplica, porém, limitada a um dia, da Semana de Arte Moderna de São Paulo), ocasião em que “Mario Brandão leu um conto regional que muito agradou” e foi só. De acordo com o seu presidente, em depoimento prestado cinquenta anos depois (reproduzido, recentemente, no blog História de Alagoas), o grupo de fundadores logo se dispersou. “Mário Brandão, o grande conteur machadiano de Almas do Outro Mundo e Freud e o meu personagem Emerenciano [livros que somente seriam publicados alguns anos à frente] foi morar no Rio de Janeiro; Zeferino Lavenère Machado [outro que viria a se ligar ao lado paterno da família de Mario Brandão, pelo casamento de uma de suas filhas com Alfredo José, filho de Manuel Maia Gomes, neto de José Maia Gomes] matriculou-se na Faculdade de Direito de Recife...” Etc., etc., etc.[xiv]

Rio de Janeiro e Bahia

Não me parece que, em Maceió ou em qualquer outro lugar, Mario Brandão tenha concluído um curso universitário ou aprendido algum ofício que lhe pudesse ser útil, profissionalmente. Sendo assim, quando ele se mudou, pela primeira vez, para o Rio de Janeiro, em 1929 ou 1930, sua única habilidade era saber escrever. (Não sei como aprendera isso. Lendo muito, provavelmente.) Tinha, portanto, de arranjar emprego onde possuir essa capacidade fosse importante. Virou jornalista (a exemplo de tantos marios-brandão de antes e depois dele, até os anos 1950 ou mesmo 1960), embora não imediatamente: em 1931, ele trabalhava no setor de publicidade da Light, a empresa gigante (ainda existente) que, no início do século XX, fazia quase tudo e mais alguma coisa na capital federal, cuidando da geração e distribuição da energia elétrica, do fornecimento de gás, do transporte público, da telefonia e da iluminação de ruas e praças.[xv]
Nessa época, o jovem Mario devia fazer serviços internos, pois seu nome raríssimamente aparece em matérias assinadas. Alguma atividade política, entretanto, ele desenvolveu, como membro da Cruzada Nacionalista O Brasil pelo Brasil, associação “operária” criada em abril de 1931, aproveitando o clima político suscitado pelo movimento revolucionário do ano anterior. Segundo o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas), a Cruzada promovia a discussão de temas definidos como “questões nacionais” (por exemplo, a Lei dos Dois Terços, de 12/12/1930, que obrigava toda empresa nacional a ter entre seus empregados essa proporção de brasileiros natos), além de prestar serviços assistenciais aos associados. Uma notícia de dezembro de 1931 identifica Mario Brandão como “diretor da Folha Nacionalista, órgão oficial daquela agremiação”. Significaria isso que ele já havia deixado a Light? Não possuo evidências conclusivas a respeito.[xvi]
Mesmo se, em 1931 e 1932, não mais estivesse vinculado à empresa de energia, Mario Brandão continuou morando no Rio de Janeiro. Em janeiro, pronunciou palestra – “O Brasil a olhos nus” – na sede da Cruzada Nacionalista. Falou sobre “as diversas questões que dizem respeito à nossa vida política, econômica e social no momento”. Foi apresentado, pelo Diário de Notícias (6/1/1932), em matéria anterior ao evento, como “nosso confrade da imprensa” e um dos “mais festejados escritores regionalistas da nova geração de intelectuais”. Poucos dias depois, dizia o jornal A Noite (12/1/1932) que, na conferência realizada, “Mario Brandão fixou aspectos e descreveu costumes do interior do Brasil e dissertou sobre nossa gente e a grandeza de nossa terra”. Para o mesmo jornal, o conferencista era “um dos nossos mais brilhantes escritores regionalistas”. Em abril, “comemorando a passagem da data de sua fundação”, a Cruzada Nacionalista se reuniu em sua sede social. Havia representantes do Sindicato dos Ferroviários, da União do Norte e do Centro dos Empregados do Cais do Porto. Mario Brandão sentou-se à mesa, como um dos que dirigiram os trabalhos.[xvii]
Contudo, nem na Light, nem na Cruzada Nacionalista, o jornalista permaneceu por muito tempo. Em 1933, ele já trabalhava para o Diário da Bahia e O Imparcial, de Salvador. É provável que o emprego em seu estado natal (ou ele poderia ser, apenas, um repórter a vender matérias avulsas para os jornais, sem manter vínculos mais estáveis com os mesmos?) lhe tenha sido arranjado devido a conexões familiares dos Brandão que, como disse, eram ou haviam sido uma família importante na Bahia. (Seu avô, Rodrigo Brandão, foi secretário de Fazenda todo-poderoso de Luís Viana, no período 1896-1900). Em depoimento posterior, ao qual faço referência mais adiante, Mario revelou uma de suas atividades nesse tempo: era “repórter marítimo”.[xviii]
Fora espreitar navios e escrever sobre eles, o que mais fazia Mario Brandão nesse tempo, em Salvador? Entregava-se à boemia, como, anos à frente, iria recordar um seu amigo à época, Ramayana Chevalier:
A noite foi o nosso teto. As escusas ladeiras baianas o nosso palco. O ruído dos mecanismos tipográficos o nosso aplauso. Libações para esquecer da burrice mesológica. E o tédio, irmão da saciedade espiritual e da precariedade física, que marca o caminho dos que não têm caminho.[xix]
Na sua permanente busca em novas cidades de algo que, se não encontrasse na própria cabeça, não acharia em lugar nenhum, em abril de 1935, ele estava de volta ao Rio de Janeiro, outra vez, com um emprego precário. Sei disso porque, quando ele se envolve em uma briga séria e é agredido por um policial na Praça Paris, seu nome aparece no noticiário e o autor da matéria o identifica como “redator do semanário Pamphleto”. Uma publicação inexpressiva, onde dificilmente haveria empregos bons. Retomo este enredo mais adiante, pois, em 1931, houve um acontecimento importante e não traumático na vida do nosso personagem.

Almas do outro mundo, o livro

Inegavelmente, o ponto alto da truncada carreira literária de Mario Brandão foi a publicação, em 1931, do livro Almas do outro mundo, que ele subintitulou “Contos típicos regionais”. São dez contos, distribuídos em 111 páginas: “Almas do outro mundo”, “Espiritismo”, “Engole cobra”, “Timidez”, “Imaginação”, “Conto de vigário”, “Noite de São João”, “O tipógrafo sonhador”, “O hóspede calado” e “História de brinquedo”. O livro teve uma tiragem limitada (eu, por exemplo, embora o tenha procurado, jamais pude vê-lo), inteiramente vendida no Rio de Janeiro. Nenhum exemplar chegou ao “Norte” – a expressão incluía o que hoje chamamos Nordeste –, a se acreditar no que disse O Jornal em 9/11/1935, mas houve a notícia de que dele sairia uma segunda edição. Não saiu. A primeira foi resenhada, com acolhida favorável, pelo menos, em Fon Fon, Beira Mar, A Noite, Jornal do Brasil, Diário de Notícias e O Jornal, todos do Rio de Janeiro.[xx]
A revista Fon Fon escreveu: “Mario Brandão é da Bahia, aparecendo pela primeira vez seu nome em livro. O gênero explorado requer talento, pois, caso contrário, a leitura torna-se monótona. O autor consegue interessar o que, sem dúvida, é uma grande vitória para um estreante”. O crítico da Beira Mar observou: “se eu fosse procurar no passado um nome parente literário do Sr. Mario Brandão, não vacilaria em citar o de Artur Azevedo. O Sr. Mario Brandão é assim natural, humorístico e, sobretudo, profundamente humano”. Na opinião de A Noite, “Almas do outro mundo é um livro que se pode ler de uma só vez. Desde as suas primeiras páginas, agrada, a leitura atrai pelo seu conteúdo, pelo inesperado de seus detalhes”. O Jornal do Brasil disse: “Almas do outro mundo é formado por dez histórias que a gente lê com prazer, gostando do que diz o autor e apreciando a sua prosa fácil e escorreita”. Para o Diário de Notícias, “Mario Brandão mostra-se, efetivamente, um escritor de grandes possibilidades. Além do estilo, que se recomenda pela leveza e pelo pitoresco, é dono de uma inteligência ágil e aguda”.[xxi]
Porém a crítica mais importante apareceu em O Jornal, sendo assinada por Tristão de Athayde, já então um intelectual de grande prestígio. Disse ele:
[Mario Brandão é um] nome inteiramente desconhecido para mim, o que sempre é um prazer raro, quando se descobre alguma coisa de valor literário. E esses contos têm certo valor. Não é o mesmo [valor que o dos contos] do Sr. Marques Rebello [livro resenhado no mesmo dia e na mesma coluna Sinais mantida por Athayde]. O autor [Mario] desses contos não vive neles. Não deixou neles emoção alguma. Não parece ser moço ou, se o é, tem uma alma precocemente envelhecida. Cético, sarcástico, seco, não se entrega nunca, ao contrário do autor [Marques Rebello] de Oscarina.[xxii]
“Alma precocemente envelhecida”? Talvez, sim. Mas, sobretudo, uma personalidade às voltas com sofrimentos passados jamais resolvidos. Não deveríamos pedir a Tristão de Athayde que descobrisse isso apenas lendo a prosa de um autor estreante, tanto mais porque os episódios tristemente espetaculares da vida de Mario Brandão ainda estavam por acontecer. Mas, as pistas de seus tormentos ele já as colocara no livro que tantas resenhas mereceu. – Pistas? – Sim. Por exemplo, no conto “Almas do outro mundo”, que integrou o livro de mesmo nome, como seu primeiro capítulo. Publicado, anteriormente (ou uma versão resumida dele) na revista Fon Fon, em 1930, ele é, nitidamente, composto por duas partes independentes. Deixo a primeira de lado e copio a segunda repetindo, inclusive, um trecho que já citei linhas acima. O autor dialoga, na imaginação, com uma possível namorada, ou esposa, que, entretanto, não está ao seu lado, no momento em que ele escreve.
Chi! Meia noite! Você já deve estar morrendo de sono, meu amor! Vou fechar o parêntese.
Não sei mais em que pé ficou o que me sucedeu na semana passada. Sim! Eu estava no segundo andar do hotel.
Tinha ido assistir à “première” de uma companhia francesa, coisa muito boa. Depois do primeiro ato, os amigos me levaram aos bastidores e ali fui apresentado à atriz Giovana de Genova, na qualidade de crítico teatral. De modo que ficamos amigos.
Voltei cedo ao hotel e subi para o quarto, número 13. Mudei de roupa. Estirei-me na cama. Fiquei com o cérebro a ruminar as sensações do dia. Daí a pouco, ouço umas pancadinhas na porta do quarto.
Nunca me dei bem com o número 13! Este número sempre me persegue.
O espiritismo fala-nos acerca de uma certa classe de duendes dados a pancadinhas. E a própria Igreja não nega isso. Segundo li algures, havia até nos seus antigos rituais uma oração destinada a afugentar os espíritos que se manifestam por meio de pancadinhas: “Afugentai, Senhor, todos os espíritos malignos, todos os fantasmas, todos os espíritos que batem”. (Spiritum percucientum).
As pancadinhas repetiram-se mais alto. Fiquei assombrado. Levantei-me. Botei a pistola no bolso. Abri a porta.
Era o porteiro do hotel que me trazia um bilhete urgente. Giovana pedia que eu fosse ter com ela na Pensão Internacional, quarto número 13. Dizia tratar-se de assunto de grande importância. E se eu não chegasse dentro de um quarto de hora, minha vida estaria em perigo. Na porta do hotel havia um automóvel à minha disposição.
Tudo isso era pavoroso, inexplicável, impossível! Tive vontade de mandar o porteiro para o inferno com o bilhete de Giovana, com o diabo que o carregasse.
Mas a curiosidade, que tem mãos de ferro, não me deixou esbravejar e me arrastou até o quarto da jovem atriz, a tal que me apresentaram no teatro.
Já lhe pedi que não tivesse ciúme. Pense no que me aconteceu e deixe de ser afobadinha.
Avalie só! A mulher, assim que lhe beijei, respeitosamente, a mão, suicidou-se estupidamente, seccionando a carótida com uma segura navalhada. O pior, entretanto, é que ela não havia deixado a mínima declaração. Era preciso que eu fugisse dali sem demora. Do contrário, seria acusado de assassínio. Mas não pude fugir. Um hóspede do quarto contíguo botou a boca no mundo a berrar loucamente: “Socorro! Socorro! O homem matou a mulher!”
De repente, era uma multidão que gritava: “Lincha este monstro!”
Fiquei numa situação horrorosa. Tentei explicar o fato. Implorei que tivessem calma. Pedi, de joelhos, que fossem mais prudentes, porque eu estava inocente. Mas tudo foi em vão. As feras avançavam, as mãos crispadas, jurando esganar-me.
Que teria feito você nestas circunstâncias?
Que fiz eu?
Suicidei-me também. Atirei na cabeça e me joguei pela janela fora a fim de evitar que os loucos me comessem cru.
Não tenha medo! Palavra de honra que não sou defunto. Eu não cheguei a morrer. O que me sucedeu foi o seguinte: caí da cama, sonhando, naturalmente porque não havia rezado para as almas do purgatório, que ontem vieram puxar meus cabelos, meu amor...[xxiii]
O suicídio – objeto de desejo, temor, planejamento, inspiração – sempre esteve presente em Mario Brandão Maia Gomes, como se, a cada momento, ele precisasse se matar para saber que estava vivo.

Os anos fatídicos

Em abril de 1931, Mario Brandão publicou Almas do outro mundo; no final desse mesmo ano e em janeiro do ano seguinte, tenho notícias de suas atividades na Cruzada Nacionalista. Provavelmente, perdera ou se desligara de seu emprego na Light. Sobrevivia como diretor da Folha Nacionalista, órgão da Cruzada, o que não devia significar muita coisa, nem em termos de remuneração, nem de segurança. Talvez por isso, em 1932 ou em 1933, ele resolveu deixar o Rio de Janeiro e voltar para a Bahia – Salvador, especificamente. Estando lá, integrou, como jornalista, a comitiva da viagem do presidente Getúlio Vargas ao Norte do país (Norte e Nordeste, diríamos hoje). Em 1934, notícia publicada no Diário de Pernambuco dá conta de uma visita à redação daquele periódico de Afonso Ligorio Costa e Mario Brandão, “que se acham [no Recife] a serviço da Grande Companhia Lírica Italiana, que estreará proximamente nesta capital.” Mario é descrito como “nosso colega da imprensa baiana e nome de relevo nos círculos literários do sul do país”. Ele estava, portanto, ainda trabalhando na Bahia.[xxiv]
Por algum motivo, nesse mesmo ano (1934), ou no seguinte, o filho de Alípio resolveu voltar para a capital federal. Em retrospecto, podemos ver que não foi uma decisão feliz. Com efeito, os anos fatídicos de Mario Brandão iriam ter início em 1935. E, a rigor, só iriam terminar com sua morte, ocorrida oito anos depois. Nos dias 8 e 9 de novembro daquele ano, os jornais traziam a notícia de um acontecimento policial relevante:
Madrugada de sangue: Um guarda civil prostra um jovem, na Praça Paris. (...) O ferido chama-se Mario Brandão, é solteiro, conta 29 anos, e trabalha num pequeno semanário que aqui se publica.[xxv]
Outros jornais também se ocuparam do incidente. “Quando deixava a Caverna Beira Mar Casino, discutiu por questões de despesa e foi baleado na boca” (A Manhã, RJ, 8/11/1935). “Um crime brutal. Verificou-se o delito na Praça Paris. A vítima foi o jornalista Mario Brandão” (Jornal Pequeno, Recife, 9/11/1935). “Selvagem atitude de um policial: Abatido com um tiro na boca um frequentador do Cabaré Caverna” (Diário de Notícias, RJ, 9/11/1935). “Alvejado por um guarda civil: Cena de sangue na Praça Paris” (O Jornal, 9/11/1935). “Cena de sangue no Cabaré Caverna: O guarda civil 362 feriu, gravemente, a bala um homem embriagado” (Jornal do Brasil, 9/11/1935). Pelo visto, Mario Brandão trocara as ladeiras da Bahia pelas boates do Rio, mas continuava a ter a noite como teto.
O jornalista ferido expôs o que tinha havido, dando a sua versão dos acontecimentos:
Eu me achava na [boate] “Caverna” na companhia de três mulheres minhas conhecidas, quando, com sono, deliberei ir repousar. Chamei o garçom, paguei a despesa e dispus-me à retirada. Mas, ao sair, o garçom acercou-se e disse que eu não pagara a despesa. Protestei e daí originou-se a discussão.[xxvi]
O pior, entretanto, aconteceria nos momentos seguintes, ainda segundo a mesma versão:
Empurraram-me porta a fora, ferindo-me ao bater com a cabeça no meio fio. Nessa ocasião, o guarda civil n. 362 aproximou-se e pôs-se a me insultar. Depois, pegando-me pelo paletó, esbofeteou-me. Reagi energicamente. Foi quando ele, sacando de um revólver, alvejou-me.[xxvii]
O Diário de Notícias criticou a atitude do policial: “chegados à rua [Mario e o homem que fazia a segurança da boate] aos pontapés e bofetões, ali, Altivo (sic) [o guarda] saca de seu revólver, detonando-o contra o boêmio. Revelava assim a espécie de policiais que servem às casas daquele gênero em nossa capital.” Também para o Jornal do Brasil (9/11/1935), o episódio seria “mais um crime praticado por um indivíduo que a nação paga, justamente, para manter a ordem”. Outras versões do mesmo episódio, entretanto, sem deixar de criticar o policial, ofereceram uma descrição menos favorável ao jornalista. O Jornal (9/11/1935) disse que Mario Brandão “encontrando-se bastante embriagado e provocando incidentes no interior da ‘Caverna’, a direção [da boate] deliberou afastá-lo da casa”, enquanto o Jornal do Commercio assim relatou o mesmo acontecimento:
Na madrugada de ontem, em estado de embriaguez alcoólica, Mario Brandão, redator do Pamphleto (...) foi obrigado, violentamente, a retirar-se do Cabaré Cinema (sic), situado na Praça Paris, em meio de tumulto. (...) Não atendendo ao estado deplorável em que se achava a vítima que, alterada pelo álcool, a todos ameaçava e provocava, o guarda Altino (sic), também ameaçado por Mario, antes de outras providências, sacou da pistola e fez contra ele dois disparos.[xxviii]
O incidente deixou sequelas na boca da vítima, deformando-a levemente. Algum tempo depois, ele estaria em Santo Amaro, Bahia, aonde pode ter ido para se refazer dos ferimentos ou tentar, novamente, um emprego em jornais de sua terra natal. Mais uma mudança de endereço que não resolveria seus problemas. Com efeito, já em julho do ano seguinte aos acontecimentos da boate Caverna, os jornais novamente iriam se ocupar com destaque de Mario Brandão. O Diário de Pernambuco, por exemplo:
Alvejado a tiros. O jornalista Mario Brandão foi alvejado a tiros, no braço esquerdo, pelo inspetor de veículos Rubem Pinheiro, no arraial de Berimbau, no município de Santo Amaro [BA]. O Sr. Mario Brandão amputou o braço.[xxix]
(“Teve o braço amputado” pareceria mais correto.) Poucos dias adiante, A Noite, do Rio de Janeiro, daria uma versão mais completa do episódio. O título e subtítulo da matéria são sintomáticos da fama que, àquela altura, na imprensa carioca, o filho de Alípio já tinha: “Estava escrito que seria um policial... O jornalista Mario Brandão, já baleado por um guarda nesta capital, foi alvejado por um inspetor de tráfego na Bahia. – Perdeu o braço esquerdo”. E prosseguia, fazendo um relato dos acontecimentos que haviam levado àquele desfecho:[xxx]
No dia de São Pedro, Mario Brandão, acompanhado de seu irmão Francisco Maria (sic) [o correto seria Francisco Maia], do inspetor de veículos Rubens Pinheiro Costa e de outras pessoas, regressava do arraial de Berimbau. O grupo voltava de uma festa e estava bastante alcoolizado. Em caminho, estabeleceu-se forte discussão entre Francisco e Rubens, no decorrer da qual este esbofeteou o primeiro, fugindo a seguir.
Ontem, casualmente, Mario Brandão encontrou, na porta de uma venda, o esbofeteador de seu irmão. Sacando de uma pistola, avançou contra ele e o alvejou, errando, porém, o alvo. Rapidamente, Rubens Pinheiro revidou, desferindo contra o agressor dois tiros que o atingiram no braço esquerdo. (...) O jornalista, que teve o braço esquerdo ontem mesmo amputado, encontrava-se na Bahia há vários meses.[xxxi]
Dessa vez, não consegui encontrar uma versão da vítima (“vítima provocadora”, convenhamos) para os acontecimentos. A amputação do braço, segundo matéria vinda da Bahia e publicada em O Jornal do Rio de Janeiro, foi uma decisão tomada pelos médicos que atenderam o jornalista “a fim de evitar a gangrena”.[xxxii]
Três meses depois de perder um braço na Bahia, Mario Brandão já tinha, de novo, trocado de cidade. Em 18 de outubro do mesmo ano, há uma notícia com origem em Maceió dando conta de uma “excursão do secretariado da Fazenda à zona do [Rio] São Francisco”. O secretário “da Fazenda e da Produção” de Alagoas era José de Castro Azevedo; a comitiva, composta “dos senhores Ildefonso Lopes, diretor da Diretoria de Agricultura; Benon Maia Gomes, Inspetor de Plantas Têxteis; Enock Macedo, diretor da Colônia Agrícola de Arapiraca; Mario Brandão e Américo Mello”. Benon Maia Gomes era filho de José Maia Gomes e, portanto, primo legítimo de Mario Brandão Maia Gomes. Pelo visto, mais uma vez, o jornalista brigão se aproximava da família de seu pai. Porém, logo um novo episódio policial iria recolocar o baiano no noticiário.[xxxiii]
O jornalista Mario Brandão assassinou o chofer Perreque em Maceió. A vítima deixa esposa e filhos. O criminoso achava-se aqui há meses, vindo do Rio, onde militava no jornalismo.[xxxiv]
No incidente, em si, não houve discussão ou briga, mas, pouco antes, o jornalista havia insultado “um companheiro de classe da vítima e, encontrando mais adiante o chofer Perreque, disparou contra ele cinco vezes a arma que conduzia”. Em seguida, procurou evadir-se sendo, entretanto, preso no Hotel Pimenta, localizado a poucos metros da cena do crime. Era onde ele residia. No prosseguimento, a reportagem em que me baseio neste ponto refez um pouco da história recente do Mario Brandão, mencionando os acontecimentos do Rio de Janeiro e da Bahia. E continua:
Voltando a Maceió há cerca de seis meses, aqui continuou frequentando os bordeis, cafés e pensões, nos quais era constante altercar com qualquer dos presentes. Em virtude desses fatos, esperava-se que, mais dia, menos dia, Mario Brandão viesse a ter um encontro fatal. E ontem, após passar o dia, segundo alguns testemunhos, em libações alcóolicas, abateu o inditoso chofer Merreque.[xxxv]
Bordeis, cafés e pensões, em Maceió; ladeiras noturnas regadas a libações, em Salvador; boates, álcool e mulheres, no Rio de Janeiro. Mario Brandão mudava de residência, mas não de cabeça. Embora preso em flagrante, na cadeia não permaneceria por muito tempo. Seu advogado alegou insanidade mental (29/1/1937) e ele foi absolvido por decisão de um juiz (14/4) e internado em asilo. A acusação apelou e conseguiu reformar a sentença (31/5); o matador de Perreque, entretanto, continuou preso até 18/1/1938, quando fugiu. Por pouco tempo, ficou em liberdade; já no dia seguinte, foi recapturado (“estava homiziado no povoado de Serra Nova”) e recolhido, desta vez, à penitenciária do Estado. Esse episódio deu margem às reações usuais: o interventor federal em Alagoas ordenou a abertura de inquérito “a fim de apurar a quem cabe a responsabilidade pela fuga do criminoso e psicopata Mario Brandão do Asilo Santa Leopoldina, onde se achava internado.” (22/1). Dois meses depois, levado a julgamento no Tribunal do Júri (17/3), foi absolvido por maioria de votos. Houve apelação e ele continuou preso. No final de março, mesmo com a sentença de absolvição ainda vigente, Mario tentou por duas vezes se suicidar (1/4).[xxxvi]
Essa história continuaria ainda por algum tempo, mas os episódios imediatamente seguintes aos até aqui narrados não foram noticiados pela imprensa. Somente em 26 de abril de 1939, um jornal do Recife fez uma espécie de resumo da ópera, instigado pela fuga e subsequente prisão do jornalista baiano na capital pernambucana. Absolvido em Alagoas pelo Tribunal do Júri, sob a alegação de insanidade mental, Mario deveria ter sido recolhido a um asilo judiciário naquele Estado. Entretanto,
Não havendo em Maceió estabelecimento especializado para esse fim, o juiz Mario Guimarães removeu o autor da morte para esta capital [Recife], sendo [o mesmo] recolhido ao manicômio Correia Picanço, a fim de ser submetido a exame.
Anteontem, um irmão da vítima, Sr. Antonio Caracilles (sic) Leite, que reside nesta cidade, ao passar pela Rua do Imperador, com surpresa, viu Mario Brandão sentado numa mesa, no restaurante A Cabocla, palestrando com um amigo.
Levou o estranho fato ao conhecimento do Dr. Etelvino Lins, chefe de polícia, que ordenou a prisão do criminoso, o que se verificou anteontem no referido estabelecimento pelo investigador José Gomes.[xxxvii]
Depois disso, desconheço por quais motivos, cessam, mais uma vez, por um tempo, as notícias sobre Mario Brandão. Tendo adicionado ao seu currículo, após matar o motorista Perreque, duas tentativas de suicídio e duas fugas de asilo, ele deve ter sido, no prosseguimento (embora eu não tenha conseguido documentar isso), absolvido em definitivo ou condenado a uma pena de curta duração. E, assim, quite com a Justiça, vamos reencontrá-lo em 1942, no Rio de Janeiro, escrevendo matérias avulsas para o jornal A Noite, participando de campanhas cívicas e de proteção aos animais e pronunciando a já referida conferência sobre as relações entre a psicanálise e a literatura. Para quem havia sido declarado, poucos anos antes, mentalmente insano, não era pouco. Infelizmente, para o filho de Alípio, essa última etapa de sua vida iria durar pouco. O suficiente, entretanto, para ele escrever e publicar mais um livro.

Freud e meu personagem Emerenciano, o segundo livro

Era para ser um romance completo. Apareceu, apenas, uma síntese. Publicado em fins de 1942, Freud e meu personagem Emerenciano seria o segundo e último livro de Mario Brandão. Ao contrário do livro anterior, este teve recepção discreta. Mereceu uma quantidade menor de resenhas. As que, efetivamente, vieram à luz falam tão pouco sobre o conteúdo da obra que mais parecem registros burocráticos. Mesmo a crítica favorável de Ramayana Chevalier (amigo de Mario Brandão, diga-se de passagem) diz mais do autor do que da obra.[xxxviii]
O que falaram os críticos? De acordo com O Jornal (1/11/1942), “o romance Freud e meu personagem Emerenciano, [é] constituído por uma série curiosa e original de cenas criadas por uma imaginação viva e combativa”. O Diário de Notícias (11/11/1942) refere-se ao livro como uma “obra escrita para a Campanha do Livro que está merecendo da crítica fartos aplausos”. (Não consegui, infelizmente, localizar muitos desses aplausos.) A Revista da Semana (16/1/1943) informa que a parte publicada é, apenas, “a síntese de seu romance completo” e que Mario Brandão “antes de apresentar um perfil de Emerenciano, personagem solitário do livro que acaba de trazer a público, já debuxara o personagem em conferência causa de discussões, de interrogações e de respostas, estas do próprio apresentador de Emerenciano”.
Ramayana Chevalier, já citado anteriormente, era um jornalista com quem Mario Brandão havia trabalhado na Bahia nos anos 1933-34. Eis parte do que ele escreveu sobre Freud e meu personagem Emerenciano:
Li, e com que desusado prazer, o novo e vigoroso livro de Mario Brandão. (...) Contar como conheci [o autor] é pedir contas ao determinismo social, que aproxima todos aqueles que sofrem e lutam no mesmo círculo das cinco partes da terra. Os jornalistas se aproximaram, mediram-se, houveram por bem arrolar entre si todas as suas legítimas tendências (sic) e os seus inocultáveis valores mentais e se fizeram amigos.
Mario Brandão sempre se especializou no escafandrismo psicológico dos bonecos humanos. Com uma nota impressionante: o seu personagem é uma síntese de todos os lutadores pobres do universo. E Freud, não resta dúvida, aí está, sincero e superior, aureolando com suas classificações ao Emerenciano que, negando veementemente ao seu criador, é incapaz de negar as próprias tendências.
A técnica literária de Mario Brandão é forte, sugestiva, ágil e brilhante. Os objetivos estão gastos pela publicidade paga e pela logorreia dos speakers. Com tudo isso, há sempre um lugar sagrado para as aferições de inteligência. E nesse lugar está o escritor baiano que é, sobretudo, cidadão do mundo.[xxxix]
Freud e meu personagem Emerenciano não teve forças para alçar seu autor a alturas maiores no Panteão literário. Redigi-lo talvez tenha servido para apaziguar Mario por uns tempos. Não por muitos.

Os anos derradeiros (1942-43)

O nome de Mario Brandão reapareceu na imprensa carioca em 10 de março de 1942, numa reportagem especial a que ele deu o título “A bordo de um navio em águas brasileiras”. O mundo estava em guerra – embora o Brasil ainda permanecesse neutro – e já tinha havido ataques a navios mercantes do nosso país por submarinos alemães, mas, todos os afundamentos haviam ocorrido em águas do Atlântico Norte, nas imediações dos Estados Unidos. Não era por isso que se podia navegar tranquilo nos mares da costa brasileira. Houve, inclusive, rumores de que navios haviam sido atacados próximos à Bahia. E foi de um trajeto marítimo entre o Recife e o Rio de Janeiro (seria sua última viagem de volta à capital federal) que o repórter falou ao se lançar, mais uma vez, na imprensa da cidade. A novidade é que ele vinha casado com Luzia Antunes Brandão e trazia junto a filhinha dos dois, Maiby, nascida no Recife em novembro de 1941.[xl]
Noite no mar. Navio às escuras. Circulam a bordo boatos de novos atentados à marinha mercante nacional. Os passageiros que se reúnem em pequenos grupos no convés, logo depois do jantar, conversam nervosamente. As senhoras fazem questão de exagerar o temor que lhes assedia o coração. Os homens revelam-se, como de ordinário, muito discretos em suas em suas apreensões. Parecem preocupados em esconder um dos outros a consciência do perigo provável. Por isso mesmo, devem raspar (sic) mais susto do que as representantes do ainda considerado sexo frágil. Aquelas desabafam. Estes recalcam, intoxicando-se, consequentemente, de medo.[xli]
Prossegue o relato:
Na verdade, todos falam com voz trêmula. Isso se justifica, porquanto é a primeira noite que se navega em trevas. As providências tomadas pela Nação no sentido de preservar a nossa frota surpreenderam-nos de Maceió para a Bahia. (...) Os últimos navios nossos felizmente só em imaginação postos a pique haviam tido sepultura em águas baianas. Atravessávamos, portanto, a zona perigosa. De modo que era natural aquele nervosismo. (...) Também tive receio, mas só na primeira noite. No dia seguinte, senti um certo tédio. Arranhava-me por dentro a unha do monstro que matou Leopardi. [xlii]
O poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) morreu em circunstâncias nebulosas, provavelmente, vítima do cólera. Mario Brandão continuou:
Tentei determinar-lhe os fatores preponderantes no fundo da personalidade. Investiguei tudo pelos subterrâneos do mundo íntimo, com a lanterna da psicanálise à mão. Encontrei a causa de meu tédio: decepção inconsciente por não haver sucedido algo daquilo cuja hipótese consciente tanto repelia o meu instinto de conservação.[xliii]
Mario justifica seu sentimento revelando ter sido repórter marítimo na imprensa baiana. Inconscientemente, estaria desejando que o navio afundasse, a fim de ter um bom tema sobre o qual escrever, mais ou menos, como se diz que Nero incendiou Roma para tocar harpa na cidade em chamas. Outro psicanalista talvez identificasse aqui apenas mais uma manifestação do velho namoro do escritor baiano com o suicídio.
O fato é que, nos dezoito meses que iria passar no Rio de Janeiro, os últimos de sua vida, Mario Brandão se entregou a uma atividade frenética. Escreveu um livro e deve ter quase terminado outro (Dezembro de 1943 acabará a guerra), que chegou a ser prometido para o mesmo ano. (Não viveu o suficiente: setembro de 1943 acabou com ele.) Deu conferências sobre Freud e a literatura. Passados seis meses, desde que chegara, encontrou acolhida como repórter especial (pago por colaboração, sem vínculo permanente) no Diário da Noite. Envolveu-se em campanhas cívicas insufladas pelo ambiente de guerra.
Depois de longa hesitação, o Brasil entrou no conflito em agosto de 1942. Em setembro, Mario lançou, por conta própria, a “Campanha do livro contra os bárbaros incendiários das criações de Freud, Einstein e Zweig”, título de uma de suas matérias, publicada no dia 18/9/1942.
Sugiro uma grande feira de livros notáveis, antigos e recentes, de mortos e de vivos e daqui peço o concurso de nossas livrarias, de nossas editoras, de nossos intelectuais, de nosso povo para o custeio dos canhões da vitória da civilização que haverão de ser fabricados com o ferro da “Pirâmide do Brasil”.[xliv]
“Pirâmide do Brasil” era uma alusão à campanha de doação de metais para ajudar no esforço de guerra. Sua filhinha, com poucos meses de idade, foi uma das primeiras doadoras, naturalmente, levada pelo pai. Poucos meses depois, quando a menina morreu, de causas que não pude conhecer, o mesmo jornal relembrou seu gesto: “houve uma garotinha cuja vontade simbolizada no desvanecimento de seus pais, trouxe ao Diário da Noite sua canequinha de alumínio como contribuição de guerra”. A menina era Maiby, filha do jornalista Mario Brandão e de Luzia Antunes.[xlv]
Mas, Mario Brandão nunca iria deixar de ser Mario Brandão. Em fevereiro de 1943, ele tentou, pela terceira vez, o suicídio, “ingerindo grande quantidade de um tóxico”. Em uma ambulância, “foi conduzido para o posto central da Assistência, sendo posto fora de perigo”.[xlvi]
Em julho desse mesmo ano, ele voltou às lides jornalísticas. Escreveu um artigo atrás do outro e, pelo menos, um conto muito significativo, ao qual deu o nome de sua filha prematuramente morta. Envolveu-se, também, em outra campanha, desta feita, em defesa dos animais. Informou aos seus leitores cariocas que já havia feito isso, interessar-se pelos bichos, quando trabalhava na Bahia:
Eu era redator do Diário da Bahia [Ele escreve “Baía”, sem o “h”] (...) Vivia, por esse tempo, na Ladeira da Montanha, um misterioso bichano. Os moradores daquela íngreme e tortuosa via pública da Boa Terra teciam, em torno da existência do felino, os mais impressionantes comentários. A julgar pelo que se tornara voz corrente ali, o gato era encantado. (...) Consegui entrevistar o estranho personagem. (...)
Sinto-me, como se vê, à vontade entre os bichos. Os mais amigos, como o cavalo e o cão, podem nos dar um coice ou uma patada. Em todo caso são, efetivamente, mais amigos do homem que o próprio homem.[xlvii]
Na continuação do artigo ou crônica, não sei, o autor alinha uma blague atrás da outra. “Muitas pessoas costumam ser injustas com a jararaca, pondo-lhe o nome em algumas senhoras de gênio violento”. “Conheço uma senhora que, se fosse mordida por uma cascavel a cobra talvez morresse”. “Até o urso, ficou provado, não é tão amigo urso quanto certos homens”. Ao passar em frente a uma loja especializada em animais, Mario Brandão percebeu que “uma enorme cobra escapulira da gaiola”, provocando pânico entre os que estavam ali. “Como reconhecesse nas pessoas que vinham em disparada, o meu prestamista Jacó, logo evoquei a cena dos israelitas castigados pelo Senhor (...) por haverem blasfemado contra Moisés”. Resolve, então, entrar na loja e escrever uma reportagem sobre ela. Conversa com os bichos: “a coruja falou em nome de todos os companheiros. (...) Entusiasmando-se, deitou erudição para cima do repórter”.
De uma em uma, chegamos, enfim, à gaiola do papagaio. (...) Considerei, então, a gafe que havia cometido. A um papagaio, com efeito, e, sobretudo, a um papagaio que se chama Zé Carioca, é que deveria ter sido concedida a palavra para interpretação geral daquela turma.
– Uma turma deletéria!, disse Zé Carioca, acrescentando: Esta coruja é uma mulher velha e horrenda e estes cachorros são extremistas... Estava despeitado.[xlviii]
Nas semanas seguintes, ele prossegue com suas reportagens sobre fatos animalescos. Escreve “Quincas Borba no hospital” (Era um cachorro.) Visita uma “Cidade aristocrática de rãs”, que funcionava na Granja Comary, em Teresópolis (muitos anos depois, tornada célebre por servir de concentração à seleção brasileira de futebol). Aproveita para publicar, anexa à matéria sobre Quincas Borba, uma carta dirigida ao “redator” do jornal que teria sido enviada por alguém escondido sob o pseudônimo de “Burro Canário”. Desconfio que o autor da missiva tenha saído o próprio Mario Brandão, aproveitando o disfarce para falar de si mesmo ao público. Lida sob essa hipótese, ela se torna um preciosíssimo documento redigido por um homem que, dois meses mais adiante, iria, finalmente, se suicidar, depois de o haver tentado em três ocasiões diferentes. Eis um resumo da carta escrita, acredito eu, pelo nada burro Mario Brandão. A matéria anterior citada no texto é aquela comentada algumas linhas acima.
Li, senhor redator, no Diário da Noite de sábado último [3/7/1943], zurrando a bandeiras despregadas, a espirituosa crônica-reportagem desse Mario Brandão contra o qual o destino injusto e os amigos ingratos ou pérfidos e traiçoeiros têm aplicado tantos coices. (...)
Soube que o nome de Mario Brandão não constava da folha de redatores do Diário da Noite, recebendo ele apenas um “vale” sobremodo compensador por crônicas-reportagens como aquela “Dezembro de 43 acabará a guerra” que esgotou até nos arquivos dos [Diários] Associados a edição do jornal. (...)
Eu estou no desvio da notoriedade, como se diz na gíria literária. Falar a verdade a respeito dos homens é espeto. Muito melhor, porque é muito mais verossimilhante do que falar a verdade a respeito dos homens, é mentir brilhantemente, como Mario Brandão a respeito dos animais.[xlix]
Das que pude localizar, a última matéria publicada por Mario Brandão (Diário da Noite, 1/9/1943) foi o conto “Maiby”, dedicado à sua filha, que havia morrido no início do ano. Embora a peça (com outro título) houvesse sido escrita muito antes, a publicação naquele momento tinha um significado especial, em face de mais uma tragédia acontecida na vida do escritor. O tema único do conto, como se deveria esperar, é o suicídio. A publicação funcionou como uma espécie de despedida: duas semanas depois, Mario Brandão estaria morto. Tinha cortado o pescoço com uma navalha, exatamente como, treze anos antes, havia feito sua personagem Giovana de Genova, no conto “Almas do outro mundo”.
Mario morto, o que aconteceu com sua mulher, Luzia Antunes Brandão? As informações sobre ela são absolutamente escassas. Com uma exceção: em 30/5/1946, o Diário da Noite publicou esta nota:
Faz anos hoje, dia 29, a galante menina Maria Alechandrovna, filha da Sra. Luzia Antunes Brandão. A aniversariante oferece uma mesa de doces às amiguinhas, em sua residência à Rua do Rezende, no 15.[l]
Seria essa Luzia Antunes Brandão a mesma mulher que havia sido corajosa o bastante para se casar, no Recife, com Mario Brandão, apenas quatro anos antes? A mãe de Maiby? Creio que sim. Os três nomes Luzia, Antunes e Brandão, são pouco comuns – juntos e nesta ordem, ainda menos; a residência no Rio de Janeiro e a época da notícia diminuem a probabilidade de se tratar de uma homônima da Luzia de quem quero falar. Mas, e Maria Alechandrovna (com “ch” e não com “x”, e um sobrenome que significa, em russo, “filha de Alechandre”)? Procurei notícias mais recentes sobre ela. Nada achei, assim como já não tinha encontrado sequer rastros de Luzia, além do referido acima. Maria Alechandrovna sumiu completamente; Luzia Antunes Brandão parece ter deixado de existir no dia em que sua filha completou nem sei quantos poucos anos. Perdeu-se Maiby; extraviaram-se Luzia e a misteriosa Maria Alechandrovna. Mario Brandão estava morto.
Adeus, Mario. Pobre e acorrentado Mario.

(Recife, Alto do Céu, 15 de março de 2017)




[i] Mario Brandão. “Almas do outro mundo”. Conto publicado na revista Fon Fon (Rio de Janeiro), na seção O Conto Brasileiro, 9/8/1930, pág. 3.
[ii] A Manhã (Rio de Janeiro), 14/9/1943, pág. 8.
[iii] Mario Brandão. “Maiby” (Conto dedicado “à memória de minha filhinha que está no Céu”). Diário da Noite (Rio de Janeiro), 1/9/1943, pág. 4. A versão de que ele teria tentado matar a filha e a mulher está em Francisco Reinaldo Amorim de Barros, ABC das Alagoas, vol 1, verbete “Mario Brandão”, que pode ser acessado em http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1104/739030_vI.pdf;
[iv] Conforme esclareci em O trem para Branquinha (nota ao Cap. 26), o nome “Elmano” me foi passado, via telefone, por Isa, filha de Yara Maria José Cardozo Maia Gomes, e neta de Alípio e Elisette. Mas a própria Isa me confessou não estar muito segura de que o meio-irmão de sua mãe tinha, mesmo, aquele nome. Sabia, também, que Alípio e Luíza haviam tido outro filho (descobri, independentemente, que se tratava de Mario Brandão Maia Gomes), mas, deste, ninguém mais se lembrava.
[v] A dúvida sobre se Mario Brandão saiu de Maceió para o Rio de Janeiro em 1929 ou 1930 decorre de duas informações, aparentemente, contraditórias. Por um lado, A. S. Mendonça Júnior (Vida social alagoana na década de vinte: Da fundação do Cenáculo Alagoano de Letras à Revolução de Trinta. Depoimento lido na sessão conjunta da Academia, Instituto e Reitoria da Universidade Federal de Alagoas, em 02 de setembro de 1978, Blog História de Alagoas, http://www.historiadealagoas.com.br/vida-social-alagoana-na-decada-de-vinte.html) menciona que, após junho de 1928, o grupo de intelectuais reunidos no Cenáculo Alagoano, de que Mario Grandão fazia parte, dispersou-se, deixando a impressão de que a debandada aconteceu pouco tempo depois daquele mês. (Mais sobre isso adiante.) Por outro lado, o redator de uma notícia relativa ao primeiro livro do jornalista baiano (“Mario Brandão. Almas de outro mundo”, Beira Mar, 12/4/1931) o descreve como tendo “fixado residência no Rio há pouco mais de um ano”, o que é compatível com a hipótese de que ele teria ido morar na capital federal no início de 1930. As demais datas de mudanças estão um pouco mais bem documentadas, como mostro no decorrer do texto.
[vi] “Literatura psicanalítica: Conferência do jornalista Mario Brandão”, em Diário de Pernambuco, 31/5/1942, pág. 4.
[vii] Mario Brandão. “A campanha do livro contra os bárbaros incendiários das criações de Freud, Einstein e Zweig”. Diário da Noite (Rio de Janeiro), 18/9/1942, pág. 3. O autor, provavelmente, se refere a Charles Fourier (e não “Furier”), o socialista utópico nascido em 1772 e morto em 1837 que, aparentemente, tinha ideias afins ao Espiritismo.
[viii] Comunicação a mim repassada, via Facebook, em 8/3/2017, por Danilo Brandão, neto de Elisa Brandão, bisneto de Yara Cardozo Maia Gomes, trineto de Alípio Maia Gomes e de Elisette Cardozo. Elisa (ou Isa, como é mais conhecida), mora em Salvador. Ela me informou, no mesmo conjunto de mensagens, que sua mãe, Yara, a terceira filha de Alípio, foi diagnosticada com o Mal de Alzheimer, vindo a falecer no dia 6/04/2003.
[ix] Verbete “Mario Brandão”, em Francisco Reinaldo Amorim de Barros, ABC das Alagoas, vol 1. O livro citado no verbete é Romeu de Avelar (Org.). Antologia de Contistas Alagoanos, Maceió: Departamento de Ciência e Cultura, 1970.
[x] Madrugada de sangue: Um guarda civil prostra um jovem, a tiros, na Praça Paris”, em A Noite (RJ) de 8/11/1935.
[xi] Diário de Notícias (Rio de Janeiro), 2/2/1943, pág. 2. A Gazeta de Notícias (2/2/1943, pág. 12) confirma em 37 anos a idade do jornalista. É preciso notar, entretanto, que, quando se noticiou sua morte, ocorrida nove meses depois dessa tentativa de suicídio, os jornais atribuíram a Mario Brandão a idade de 35 anos. Preferi considerar que, nesse caso, eles todos se basearam num mesmo comunicado (possivelmente, incorreto) do hospital onde o jornalista foi socorrido em novembro de 1943, mantendo, portanto, minha estimativa de que ele nasceu em 1906 (e não em 1908), mas existe a possibilidade de essa última informação e não as anteriores, duas das quais com datas bem distanciadas entre si, seja a correta.
[xii] Francisco Reinaldo Amorim de Barros, ABC das Alagoas, vol 1, http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1104/739030_vI.pdf; Elcio de Gusmão Verçosa. Cultura e educação nas Alagoas: História, histórias. 4ª edição. Maceió, Edufal, 2006, pág. 128; Marta Emília de Souza e Silva. Poesia visual em Alagoas. Maceió: Edufal, 2007, pág. 69; A. S. de Mendonça Júnior. Vida social alagoana na década de vinte: Da fundação do Cenáculo Alagoano de Letras à Revolução de Trinta. (Depoimento lido na sessão conjunta da Academia, Instituto e Reitoria da Universidade Federal de Alagoas, em 02 de setembro de 1978), Blog História de Alagoas, http://www.historiadealagoas.com.br/vida-social-alagoana-na-decada-de-vinte.html.
[xiii] Élcio de Gusmão Verçosa. Cultura e educação nas Alagoas: História, histórias. 4ª edição. Maceió, Edufal, 2006, pág. 128. (Não consegui recuperar a publicação original em que Tadeu Rocha escreveu as frases citadas.)
[xiv] A. S. de Mendonça Júnior. Vida social alagoana na década de vinte: Da fundação do Cenáculo Alagoano de Letras à Revolução de Trinta. (Depoimento lido na sessão conjunta da Academia, Instituto e Reitoria da Universidade Federal de Alagoas, em 02 de setembro de 1978). Em Blog História de Alagoas, http://www.historiadealagoas.com.br/vida-social-alagoana-na-decada-de-vinte.html (A informação relativa a Zeferino Lavenère Machado me foi passada por Ricardo Simões, sobrinho de Alfredo José de Maya Gomes.)
[xv] O autor não identificado de uma das resenhas do primeiro livro de Mario Brandão (Almas do outro mundo, 1931) descreve-o como “nosso prezado confrade da Publicidade da Light” (Beira Mar, RJ, 12/4/1931). A revista Fon Fon (Rio de Janeiro) publicou uma foto em que aparece Mario Brandão, devidamente identificado na legenda, no meio de um grupo de “funcionários de publicidade da Light” (Fon Fon, 10/1/1931, pág. 51.) As informações sobre as múltiplas tarefas da Light, em seus primeiros anos, eu as colhi no site da empresa, em http://www.light.com.br/grupo-light/Quem-Somos/historia-da-light.aspx
[xvii] Diário de Notícias (RJ), 6/1/1932, pág. 12; A Noite (RJ), 12/1/1932, pág. 2. Diário de Notícias, 19/4/1932, pág. 3.
[xviii] Em 1943, registrou Mário Brandão: “Já escrevi acerca do presidente Getúlio Vargas. Foi na Bahia, em 1933” (Mario Brandão, “A solidariedade do Presidente Vargas para com os mutilados”, Diário da Noite, 19/7/1943, pág. 3). Outra evidência de que ele trabalhava na Bahia, em 1933: “No dia 22 do corrente [agosto de 1943] completará dez anos de início da excursão do presidente Getúlio Vargas ao Norte da República. (...) Os jornalistas que tomaram parte na comitiva [dentre os quais] Mario Brandão, do Diário da Bahia e do Imparcial... (“A viagem do presidente ao Norte do país”. Diário da Noite, 13/8/1943, págs. 1 e 10.)
[xix] “Os estudiosos de Freud na literatura brasileira: Em torno de um livro esgotado”. Diário da Noite, 19/8/1943, pág. 5.
[xx] Mario Brandão. Almas do outro mundo: Contos típicos regionais. Rio de Janeiro, Gráfica Ipiranga, 1931.
[xxi] Fon Fon, 15/8/1931, pág. 49; Beira Mar, 8/8/1931, pág. 4; A Noite, 11/4/1931, pág. 8; Jornal do Brasil, 3/4/1931, pág. 9; Diário de Notícias, 17/4/1931, pág. 11.
[xxii] Tristão de Athayde. Resenha crítica do livro Almas do outro mundo, de Mario Brandão. O Jornal, 5/7/1931, pág. 4.
[xxiii] Mario Brandão. “Almas do outro mundo”. Conto publicado na revista Fon Fon (Rio de Janeiro), na seção O Conto Brasileiro, 9/8/1930, pág. 3.
[xxiv] Cf. relatado, dez anos depois, em “A viagem do presidente ao norte do país”, Diário da Noite (RJ), 13/8/1943, págs. 1 e 10. A notícia da passagem de Mario Brandão pelo Recife está em Diário de Pernambuco, 5/7/1934, pág. 4 (Na seção “Viajantes”).
[xxv] A Noite, RJ, 8/11/1935, pág. 3.
[xxvi] O Jornal, 9/11/1935, pág. 4.
[xxvii] O Jornal, 9/11/1935, pág. 4.
[xxviii] Jornal do Commercio (RJ), 9/11/1935, pág. 4.
[xxix] Diário de Pernambuco, 3/7/1936, pág. 5.
[xxx] A Noite (RJ), 7/7/1936, pág. 14.
[xxxi] A Noite (RJ), 7/7/1936, pág. 14.
[xxxii] O Jornal (RJ), 5/7/1936, pág. 8.
[xxxiii] A notícia sobre a viagem do secretário alagoano e sua comitiva à “zona sanfranciscana” foi colhida em O Jornal (RJ), 18/10/1936, pág. 3.
[xxxiv] A Noite (RJ), 7/1/1937, pág. 46.
[xxxv] Diário de Pernambuco, 10/1/1937, pág. 9.
[xxxvi] As datas inseridas no parágrafo a que se referem estas notas correspondem às das edições dos jornais de onde as informações foram colhidas. Na ordem em que aparecem no texto, as fontes são: Diário de Pernambuco, 29/1/1937, pág. 7; Diário de Notícias, 14/4/1937, pág. 2; A Noite, 31/5/1937, pág. 25; A Noite, 18/1/1938, pág. 24; A Noite (RJ), 19/1/1938, pág. 21; Jornal do Brasil, 22/1/1938, pág. 17; A Noite (RJ), 17/3/1938, pág. 4; Diário de Pernambuco, 18/3/1938, pág. 2; Diário de Pernambuco, 1/4/1938, pág. 3.
[xxxvii] Jornal Pequeno (Recife), 26/4/1939, pág. 2.
[xxxviii] O lançamento ou o anunciado lançamento do livro Mario Brandão, Freud e meu personagem Emerenciano... Síntese de um romance. (Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1943) foi registrado em O Jornal (RJ), 1/11/1942, pág. 14; no Diário de Notícias (RJ), 11/11/1942, pág. 10; na Revista da Semana (RJ), 16/1/1943, pág. 10; e no Diário da Noite, 19/8/1943, pág. 5.
[xxxix] “Os estudiosos de Freud na literatura brasileira: Em torno de um livro esgotado”. Diário da Noite, 19/8/1943, pág. 5.
[xl] O nome da mulher de Mario Brandão aparece em “Primeira doadora de metais do Brasil” (Diário da Noite, RJ, 8/9/1943, pág. 18). Segundo o mesmo Diário da Noite (2/9/1943, pág. 4), Maiby nasceu no Recife, no dia 25/11/1941 (e não 1942, como aparece; a menina acompanhou o pai na viagem de março desse ano; não poderia ter nascido em novembro!) e morreu em 3/1/1943. Essa última data também está sujeita a dúvida: no dia 6/1/1943, o Diário da Noite (“Adeus Maiby”) noticiou a morte da menina como tendo ocorrido no dia anterior, ou seja, em 5/1/1943.
[xli] Mario Brandão. “A bordo de um navio em águas brasileiras”. Diário da Noite (RJ), 10/3/1942, pág. 2.
[xlii] Mario Brandão. “A bordo de um navio em águas brasileiras”. Diário da Noite (RJ), 10/3/1942, pág. 2.
[xliii] Mario Brandão. “A bordo de um navio em águas brasileiras”. Diário da Noite (RJ), 10/3/1942, pág. 2.
[xliv] Mario Brandão. “A Campanha do Livro contra os bárbaros incendiários das criações de Freud, Einstein e Zweig”. Diário da Noite, 18/9/1942, pág. 3.
[xlv] Diário da Noite, RJ, 31/8/1942, pág. 11; Diário da Noite, RJ, 8/9/1943, pág. 18.
[xlvi] Diário de Notícias (RJ), 2/2/1943, pág. 2.
[xlvii] Mario Brandão. “Os bichos continuam dando palpite...” Diário da Noite, RJ, 3/7/1943, págs. 12 e 14.
[xlviii] Mario Brandão. “Os bichos continuam dando palpite...” Diário da Noite, RJ, 3/7/1943, págs. 12 e 14.
[xlix] Diário da Noite, RJ, 9/7/1943, pág. 11.
[l] Diário da Noite, RJ, 30/5/1946, pág. 6.


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