segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Fragmentos de um livro com velhas histórias familiares



Gustavo Maia Gomes


Arrecifes e o porto do Recife em 1875. (Foto de Marc Ferrez, acervo do Instituto Moreira Salles.)


"O Recife é uma dádiva do porto". A frase de Heródoto, que se referia ao Egito e ao Rio Nilo, eu a ouvi, pela primeira vez, quando a última pirâmide ainda estava em obras. Acredito que da boca de Dona Inês, a professora inesquecível que me ensinou a ler. Aplico-a, com adaptações, ao Recife. É certo que a cidade não vivia apenas da exportação de açúcar e algodão, do que tudo o mais se derivasse. Existiam outros fatores autônomos, como o comércio interprovincial por vias terrestres e o emprego público. Mas isso não deixa de ser um argumento de segunda ordem. A economia recifense, não apenas no século XIX, mas, desde o início da colonização até, talvez, os anos 1950, foi, fundamentalmente, uma dádiva de seu porto. 


Não era pequeno o movimento de navios no porto do Recife, na segunda metade do século XIX. No dia 1 de janeiro de 1872, entraram os navios Mandaú, vapor brasileiro de 222 t, com carga de algodão vinda de Mamanguape (Paraíba); Alice, vapor inglês de 899 t, vindo de Liverpool e Lisboa, com vários gêneros; o Erie, vapor americano de 2.900 t, vindo do Rio de Janeiro, com café e outros gêneros; a barca inglesa (sic) George Washington, de 414 t, trazendo carvão de Liverpool; a barca sueca Sygnus, de 357 t, com carvão de Hull; o brigue inglês Joshua & Mary, de 218 t, trazendo 2.330 barricas de farinha de trigo vindas de Trieste; a barca portuguesa Felix, de 318 t, trazendo café e outros gêneros do Rio de Janeiro; o brigue sueco Helena, de 224 t, com lastro vindo do Rio de Janeiro.[i] 

No mesmo dia, saíram a galera espanhola Joaquim Serra, levando uma carga de algodão para Barcelona; o brigue brasileiro Raio, com carga de açúcar, aguardente e outros gêneros para o Pará; o vapor brasileiro Ipojuca, levando carga de vários gêneros para Granja e portos intermédios. Em novembro, diria o presidente da Província de Pernambuco, Faria Lemos, em seu relatório à Assembleia: “é calculada [para o ano todo de 1872] a entrada de navios de longo curso em 700 e tantos e os brasileiros de grande cabotagem em 300 e tantos”. Mais navios estrangeiros que brasileiros.[ii] 

Pelo resumo da última semana comercial de 1871, ficamos sabendo que “em consequência de notícias vindas da Europa, de preços mais altos nos mercados ingleses para o algodão, este gênero subiu aqui cerca de 300 a 500 reis em arrobas”. Prosseguia: “o mercado de açúcar esteve um pouco paralisado, poucas transações se fizeram”. Quanto ao café, de que Pernambuco era importador,

O mercado por agora está suprido, alguns lotes vendidos têm sido a preços mais baixos. Não houve chegada de carne do Rio Grande [do Sul], os preços não se alteraram e a saída para o consumo foi pequena. Não constam vendas de couros, também não há muitos para vender. Continua abundante o mercado de farinha de mandioca; não há notável alteração nos preços dos outros artigos do país, dos quais está mais ou menos suprido o mercado.

A importação do estrangeiro, continuava o jornal,

Foi de porção de arroz da Índia, de cinco navios com bacalhau, dos quais dois seguiram para o Sul; dois ditos com carne do Rio da Prata, onze ditos com carvão de pedra, do qual o mercado está muito abundante, quatro ditos com farinha de trigo, um dito com genebra [aguardente de cereais] de Hamburgo, além de outros com diversos gêneros.[iii]

Uma resenha produto a produto dos “gêneros nacionais” entrados no porto ou por ele saídos relacionava a aguardente, o algodão, o “algodão de Maceió”, o da Paraíba, o do Rio Grande do Norte, o açúcar, o “açúcar de outras províncias”, o café, a carne seca do Rio Grande, couros salgados, couros salgados verdes, farinha de mandioca, feijão, fumo, gorduras, goma de mandioca, mel, milho, sal do Assu, solas, velas de carnaúba...

Dentre os “gêneros estrangeiros”, o Jornal do Recife relacionava o alpiste, o arroz da Índia, o azeite de oliveira, a banha de porco, “batatas das inglesas e das portuguesas”, bacalhau, “a bolachinha americana”, breu, canela, carne seca do Rio da Prata, carvão de pedra, cebolas, cervejas da inglesa e alemã, chá, chouriças, chumbo de munição... E mais: cominho, cravo da Índia, cimento, erva doce, farelos, farinha de trigo, genebra, querosene, louça inglesa, massas, manteiga, óleo de linhaça, passas, papel de embrulho, pimenta da Índia, presuntos, pólvora, queijos, sardinhas de Nantes, tabuado [porção de tábuas] de pinho, toucinho de Lisboa, velas de cera, velas estearinas, vinagre de Lisboa, vinhos...[iv]

Os produtos “exportáveis”

Em valor, a quase totalidade da exportação feita pelo Recife (não necessariamente de bens produzidos em Pernambuco) se resumia a açúcar e algodão. Esporadicamente, apareciam vendas de outros produtos – por exemplo, no dia 29 de dezembro de 1871, aguardente, espírito de vinho e tábuas de amarelo e de louro – seja para o estrangeiro ou para as demais províncias. Nem por isso deixava a repartição arrecadadora de impostos de publicar uma extensa lista de “gêneros sujeitos a direitos de exportação”, com os respectivos preços de referência.

Na semana de 2 a 5 de janeiro de 1872, a relação dos produtos tributáveis na saída incluía abanos, algodão em caroço, algodão em rama ou em lã, animais vivos (carneiros e porcos), arroz com casca e descascado ou pilado, açúcar branco, mascavado ou refinado, aves vivas (galinhas e papagaios), azeites de amendoim, de coco e de mamona, batatas alimentícias, aguardentes (cachaça, de cana, genebra, ou restilada), álcool, cerveja, vinagre, vinho de caju, bolacha, café (escolha ou restolho; torrado ou moído)...

...cal branca, cal preta, carvão vegetal, cera (amarela ou de carnaúba), chá, cocos secos, cola, couros de boi (secos salgados, espichados, verdes), couros de cabra curtidos, couros de onça, doces (em calda, em geleia ou massa, secos), espanadores de penas (grandes ou pequenas), espanadores de palha, esteiras de carnaúba, esteiras próprias para forro ou para estiva de navios, estopa nacional, farinha de araruta, farinha de mandioca, feijão de qualquer qualidade, charutos, cigarros, fumo em folhas, fumo em latas, goma de mandioca...

...ipecacuanha (planta medicinal) em raiz, toros de angico, caibros, enxalmeis, frechais, couçoeiras (sic) de jacarandá, lenha em achas, lenha em toros, linhas e esteios, pranchões de louro, pau brasil, pau de jangada, melaço, mel de abelhas, milho, ossos, palha de carnaúba, pechuri (sic), pedras de amolar, pedras de filtrar, rebolos, penas de ema, piaçava, pontas ou chifres de novilhas ou vacas, sabão, sal, salsaparrilha, sapatos de couro branco, sebo em graxa, sola e vaqueta, tapioca, unhas de boi, vassouras (de carnaúba, de piaçava, de timbó).[v]

Muitos desses produtos que, de “exportáveis” pouco tinham (apesar da cobiça do governo em taxar sua saída), ainda estão por aí, mormente, nas feiras do Interior. Alguns fizeram parte de meu dia-a-dia de criança e jovem no Recife, em Maceió, em Branquinha, AL, na praia da Maria Farinha (Paulista, PE), nos anos 1950 e 1960.

Os abanos (o fogão da fazenda Monte Verde, em Branquinha, era de lenha; abanos de palha não podiam ser dispensados); a cera de carnaúba, que usávamos, meu irmão Ivan e eu, para lustrar os “jogadores” do futebol de botões, feitos com chifres de boi; os couros dos chinelos de feira e das selas de cavalo; os doces (os que Lupicínia, mãe de Jairo, mulher de Abílio, fazia com os araçás em Monte Verde são inesquecíveis; os de goiaba, ainda hoje, não dispenso)...

...os espanadores de palha, as esteiras – de piripiri, não de carnaúba – em que cheguei a dormir, muitas vezes, estendendo-as pelo chão, em mal explicados interiores nordestinos; a farinha, a goma de mandioca, a tapioca, que dispensam comentários, dada a sua incontestável atualidade; o pau de jangada, que ainda se podia encontrar (com dificuldade, embora) nas matas próximas à praia de Maria Farinha, nos anos 1960; o sebo, para passar nas bolas de couro em decomposição das peladas futebolísticas; o melaço (sempre preferi chamá-lo mel de engenho), que eu comprava em pequenas porções no portão de minha casa; as pedras de amolar, as vassouras de piaçava...


[i] Diário de Pernambuco, 2/1/1872, pág. 5.
[ii] Diário de Pernambuco, 2/1/1872, pág. 5; Relatório do Presidente da Província Faria Lemos à Assembleia, 27/11/1872, pág 15.
[iii] Jornal do Recife, 2/1/1872, pág. 3.
[iv] Jornal do Recife, 2/1/1872, pág. 3.
[v] Jornal do Recife, 2/1/1872, pág. 3.

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