segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A cidade que o trem trouxe e o rio levou

     Se um dia eu vier a escrever um livro de memórias, ele se chamará O Trem para Branquinha. Que trem? Que Branquinha?


A estação de Branquinha em 2007.
Foto Claudio Vitoriano, em www.estacoesferroviarias.com.br

Ivan espera o trem que não virá na estação que já não existe.
Foto Gustavo Maia Gomes (8/2/2014)





















Originalmente, um distrito de Murici, na região canavieira de Alagoas, Branquinha tornou-se município em 1962. Era para onde eu ia, viajando de trem, passar as férias, na minha infância. Hoje, quem mora ali tem apenas vagas lembranças das fazendas que ficavam ao redor: Monte Verde, do avô Nominando; Campo Verde, do tio Jovino; Três Paus; Guanabara; Cocho d’Água...
Inexpressiva, a cidade só é lembrada nas ocasiões em que alguma coisa muito ruim acontece. Como em 2010, quando uma parte dela sucumbiu à fúria do Mundaú. Foi a maior cheia que o rio já teve. As águas derrubaram a estação de trens, construção mais importante que havia em Branquinha.
Importância histórica, diga-se, pois o lugar deve sua existência ao trem. Devia. Já nada resta da estação; nem das duas ruas que faziam o vilarejo, nas cercanias de onde os vagões paravam. Estive lá, este fim de semana, com meu irmão, Ivan. Constatamos o óbvio: o que o trem havia trazido, a cheia levara. Mas havia coisa pior.
Diálogos branquinhenses
No antigo coração de Branquinha, naquela manhã de sábado, sete jovens estavam reunidos fazendo nada.
– “Vocês trabalham na cana?”, perguntei-lhes.
– “Não há mais cana aqui”, respondeu um deles.
– Então, o que fazem?
– Nada. Quando aparece algum serviço, a gente faz, mas é raro.
O que nos pareceu um escândalo, a Ivan e a mim, não preocupava os jovens. Por quê?
– “Tem Bolsa Família?”, indaguei ao mais velho.
– Não.
– Mas, alguém em sua casa tem?
– Tem, sim.
Fiz a mesma pergunta a cada um dos outros seis. Só um deles não tinha a bolsa. Estava um pouco mais bem vestido. Talvez fosse filho do prefeito ou de um vereador. Conclui que, para os branquinhenses, o Bolsa Família tornou-se um projeto de vida. Pelo menos, para os que não podem sonhar em disputar a eleição.
Lembranças de uma cidade
Não nasci em Branquinha, mas foi por pouco. Meu irmão mais velho, Ivan, sim. 1943. Algum tempo depois, nossos pais, Mauro e Stella, mudaram-se para o Recife. Ao perder a esperança na possibilidade de criar sua família plantando cana-de-açúcar e, uma coisa levando à outra, ao trocar o campo pela cidade – onde buscaria um emprego público, a prática da advocacia ou, como acabou acontecendo, ambas as coisas –, Mauro escrevia sua versão particular de uma história comum a tantos contemporâneos.
Eram demasiados os herdeiros de terras na região do açúcar, não apenas de Alagoas, mas do Nordeste, e a cana não sustentaria a todos. Por isso, muitos saíam. Os que ficavam – os proprietários maiores e os usineiros – iam levando a vida, ricos, alguns, em termos relativos; endividados, todos, muito além das possibilidades reais de seus negócios. Felizmente, para uns e para outros, havia o governo, com os empregos; a Faculdade de Direito do Recife, com os diplomas; e o Banco do Brasil, com os financiamentos, frequentemente, renegociados.
Tendo perdido a oportunidade de nascer em Branquinha, vim a fazê-lo no Recife, em 1947. Deste ano até, pelo menos, à primeira metade dos anos 1960, passar férias em Monte Verde tornou-se minha rotina. Em regra, viajávamos – Mauro, Stella, Ivan e eu – no trem da Great Western, depois Rede Ferroviária do Nordeste; mas, às vezes, íamos de avião até Maceió, onde viviam o avô paterno Nominando e minha avó materna, Olga, além de tios e primos, e de lá, depois de alguns dias, embarcávamos no trem para Branquinha. Quando viajava em dezembro, eu, no caminho, sonhava com os cajus da fazenda. Ainda hoje sonho com cajus, embora tenha experimentado coisas muito mais gostosas, desde que deixei de ser criança. Essa era a Branquinha.
E o trem?
Até 1954, as locomotivas eram marias-fumaças, movidas a lenha e vapor; depois desse ano, apareceram as máquinas diesel. A duração da viagem do Recife a Maceió, quando não havia atrasos, encurtou-se de doze para dez horas; do Recife a Branquinha, passamos a gastar já não dez, porém oito horas. Viajávamos na única parte do trem onde se podia reservar assentos, um vagão exclusivo. Primeira classe. Não era grande coisa, claro, mas, para os trens, também vale o que alguém disse sobre os aviões: neles, só há duas classes. A primeira e a última.
As estações tinham nomes marcantes: Boa Viagem, Pontezinha, Escada, Paquevira, Catende, Maraial, São José da Lage, Branquinha, Nicho, Murici, União dos Palmares, Bebedouro. Nelas, podíamos comprar laranjas, doces, alfenins, cavacos, rodelas de cana. Em Branquinha, o trem descarregava diariamente sacos de sururu e pacotes de jornais vindos de Maceió. Mas o melhor da viagem era quando íamos ao vagão-restaurante tomar um guaraná Champagne e comer alguma coisa. Também me lembro do banheiro – quero dizer, da latrina – que se comunicava diretamente com o mundo exterior, pois era aberta embaixo do assento e não devia ser usada quando os trens estivessem parados nas estações. (Eu ficava pensando nos sobressaltos que as pessoas em terra sentiriam, se os aviões adotassem o mesmo sistema.) Esse era o trem.
Tenho, certamente, muitas outras lembranças, boas e más, de outras épocas e lugares. Mas, por alguma razão, o trem para Branquinha ganhou um lugar especial em minha memória. Pode ter sido por causa do guaraná Champagne, dos cajus de Monte Verde, das laranjas de Maraial, ou da impressão que me causava ir deixando o cocô ao longo do caminho. Às vezes, espalhado em quilômetros.
Gustavo Maia Gomes
(10/2/14)

(Uma parte deste texto foi publicada em 2010, na revista Nordeste Econômico. O autor, Mauro Bahia, cedeu-me os direitos da republicação. Na verdade, tratou-se de uma transação interna, se é que me entendem.)

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